Sobre(vivências) indígenas e o mundo do “trabalho”


The Outliv(ing) of Indigenous Peoples

and the world of "Labor"

El sobre(vivir) indígena y el mundo

“laboral”


Rosely A. Stefanes Pacheco Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) Lattes: http://lattes.cnpq.br/2559462109019621 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5148-3565


RESUMO

Introdução: Tanto na esfera nacional, quanto internacional, verificam-se avanços em termos do reconhecimento de direitos coletivos dos povos indígenas. No entanto, mesmo com todas estas alterações legais, no Brasil, o desconhecimento ou desprezo pelo papel da diversidade, tem sedimentado uma “noção de mundo” quase sempre negativa com relação aos povos indígenas. Neste sentido, é importante destacar o processo de vulnerabilidade e exploração, em especial nas relações de trabalho a que estes povos são submetidos.


Objetivo: Demonstrar as condições de vulnerabilidade a que são expostos os povos indígenas, em especial os Guarani e Kaiowá nas relações de trabalho. Além do que, analisar quais são os fatores que contribuem para a situação de vulnerabilidade, bem como apresentar algumas ações que têm sido realizadas para mitigar a situação de violência por órgãos ligados ao Poder Judiciário.

Metodologia: O presente estudo utiliza metodologia de pesquisa bibliográfica, fundamentada em revisão de literatura com relação à história e direito dos povos indígenas e à dinâmica das relações de trabalho, bem como, a técnica da observação participante.


Resultados: Demonstrar que a violação dos direitos dos indígenas, em especial dos Guarani e Kaiowá, em suas relações de trabalho, decorre de uma série de violências que tem seu início com as políticas públicas de Estado pensadas e efetivadas no decorrer do processo histórico para estes povos.


Conclusão: A garantia de condições dignas de trabalho para os povos indígenas é um desafio complexo que requer ações coordenadas do Estado, dos empregadores, da população não indígena e das próprias comunidades indígenas. No entanto, enquanto não houver uma resposta para a questão que diz respeito às terras indígenas, “qualquer política de Estado, de cunho assistencialista às comunidades Guarani e Kaiowá, será apenas paliativa”.

PALAVRAS-CHAVE: Guarani e Kaiowá. Povos Indígenas. Relações de trabalho.


Recebido em: 01/10/2024 Aprovado em: 05/11/2024


ABSTRACT

Introduction: Both nationally and internationally, advances have been made in recognizing the collective rights of indigenous peoples. However, even with all these legal changes, in Brazil, ignorance or disregard for the role of diversity has solidified an almost always negative "worldview" regarding indigenous peoples. In this context, it is important to highlight the process of vulnerability and exploitation, especially in the labor practices to which these peoples are subjected.


Objective: To demonstrate the conditions of vulnerability to which indigenous peoples are exposed in labor practices, especially the Guarani and Kaiowá. Additionally, it will be analyzed the factors that contribute to this vulnerability and presented some actions undertaken by branches linked to the Judiciary to mitigate the situation of violence.


Methodology: This study utilizes a bibliographic research methodology, grounded in a literature review concerning the history and rights of indigenous peoples and the dynamics of labor practices. Additionally, the technique of participant observation is employed.


Results: It is demonstrated that the violation of the rights of indigenous peoples, particularly the Guarani and Kaiowá, in their labor relations, stems from a series of violences that originated with state public policies conceived and implemented throughout their historical process.

Conclusion: Ensuring decent working conditions for indigenous peoples is a complex challenge that requires coordinated actions from the State, employers, the non-indigenous population, and the indigenous communities themselves. However, if there is no resolution to the issue concerning indigenous lands, "any state policy of an assistentialist nature towards the Guarani and Kaiowá communities will be merely palliative."


KEYWORDS: Guarani and Kaiowá. Indigenous Peoples. Labor Relations.


RESUMEN

Introducción: Tanto a nivel nacional como internacional, ha habido avances en lo que respecta al reconocimiento de los derechos colectivos de los pueblos indígenas. Sin embargo, incluso con todos estos cambios legales, en Brasil, la ignorancia o el desprecio por el papel de la diversidad han cimentado una «noción del mundo» casi siempre negativa en relación con los pueblos indígenas. En este sentido, es importante destacar el proceso de vulnerabilidad y explotación, especialmente en las relaciones laborales, al que están sometidos estos pueblos.


Objetivo: Demostrar las condiciones de vulnerabilidad a las que están expuestos los pueblos indígenas, especialmente los Guarani y Kaiowá, en las relaciones laborales. Además, analizar los factores que contribuyen a esta


situación de vulnerabilidad, así como presentar algunas acciones que han sido tomadas para mitigar la situación de violencia por parte de órganos vinculados al Poder Judicial.


Metodología: Este estudio utiliza la metodología de investigación bibliográfica, basada en una revisión de la literatura en relación con la historia y los derechos de los pueblos indígenas y la dinámica de las relaciones laborales. También utilizó la técnica de observación participante.


Resultados: Demostrar que la violación de los derechos de los pueblos indígenas, especialmente de los Guarani y Kaiowá, en sus relaciones laborales, proviene de una serie de violencias que tienen sus inicios en las políticas públicas estatales pensadas y puestas en práctica a lo largo del proceso histórico para estos pueblos.


Conclusión: Garantizar condiciones de trabajo dignas para los pueblos indígenas es un desafío complejo que requiere la acción coordinada del Estado, los empleadores, la población no indígena y las propias comunidades indígenas. Sin embargo, mientras no haya una respuesta a la cuestión de las tierras indígenas, «cualquier política estatal de carácter asistencial para las comunidades Guarani y Kaiowá será sólo un paliativo».

PALABRAS CLAVE: Guarani y Kaiowá. Pueblos indígenas. Relaciones Laborales.


INTRODUÇÃO


“Olha, a gente gostaria de trabalhar assim, pra gente próprio mesmo, sabe? Porque eu nasci, minha mãe, e o meu pai, eles trabava assim, na roça. E criavam nós assim mesmo”1.


Nas políticas de Estados implantadas na América Latina2, os povos indígenas foram apresentados como constituintes de algo arcaico, primitivo que deveriam ser


1 Depoimento colhido na Tekoha Gwapo’y Mi Tujury no dia 7 de julho de 2022. In: Relatório Parcial – Segurança – Acesso à Justiça. Comissão Transitória Indígena, Campo Grande/MS, 20 de Abril de 2023. Elaborado por Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais Quilombolas, de Terreiro, Ribeirinhas e Periféricas”. Relatório de Inspeção Tekoha Gwapo’y Mi Tujury do Povo Guarani e Kaiowá em Amambai, Mato Grosso do Sul, em 07 de julho de 2022.

2 Neste sentido ver: STEFANES PACHECO, Rosely A. e SOUZA FILHO, Carlos Marés de. Os Povos Indígenas e os difíceis caminhos do diálogo intercultural. Disponível em https://pt.scribd.com/document/135978954/Os-povos-indigenas-e-os-caminhos-do-dialogo- intercultural. Acesso em 20 de ago. 2024.


catequizados, disciplinados e incorporados paulatinamente à civilização nacional. Eram e são em muitos casos, localizados em um momento anterior ao chamado desenvolvimento histórico da humanidade. Por certo, esse discurso ocorre no sentido de legitimar uma situação como uma forma natural do ser da sociedade e das identidades. Ademais, conforme expõe Souza Filho3: “Os Estados latino-americanos, ao se constituírem, esqueceram seus povos indígenas”. Trata-se de um “esquecimento” com propósitos bem delineados.

Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo destacar os povos indígenas, em especial os Guarani e Kaiowá e a sua inserção no “mundo do trabalho. Trata-se de “mundo”, no qual, por muitas vezes, ficam expostos a condições precárias de trabalho, conforme denúncias constatadas e apresentadas no decorrer deste estudo, o que vem corroborar para mais uma das violações a que foram e são submetidos no decorrer do processo histórico.

Diante disso, apresento a temática que envolve povos indígenas, terra e trabalho, visto que, não há como falar na precarização do trabalho indígena, nas condições de vulnerabilidade a que são expostos, sem mencionar a expropriação das terras tradicionais, que é considerado um dos fatores que tem facilitado a exploração nas relações de trabalho.

Para este estudo, além da revisão bibliográfica sobre o tema, também recorri a técnica da observação participante, pois acompanhei alguns destes casos em que se detectaram violações de direitos indígenas, em especial dos Guarani e Kaiowá no estado de Mato Grosso do Sul.


  1. Da população indígena e das terras indígenas


    De acordo com os dados do Censo 2022 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem 1.693.535 de pessoas indígenas.


    3 SOUZA FILHO, Carlos Marés de. O renascer dos povos indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá, 1999, p. 61.


    Importante destacar que, a população indígena contabilizada em 2022 é 88,8% maior que a registrada em 2010, quando foi realizado o Censo anterior e foram identificados 896.917 indígenas no país.

    Destaca-se que, o aumento do número de pessoas que se identificam enquanto indígenas, tanto pode ser explicado pelas mudanças metodológicas realizadas pelo órgão responsável para “melhorar a captação dessa população”, conforme dados da Secretaria de Comunicação Social4 quanto, pela significativa emergência étnica que ocorreu nos últimos anos.

    Por certo, a presença e a atuação indígena cada vez mais visível e marcante, tanto nos cenários políticos nacionais, quanto internacionais, especialmente a partir dos anos 1980, demonstra que estes povos estão inseridos em nosso cotidiano. Tal posicionamento nega a postura assimilacionista que pregava o suposto e inevitável fim das populações indígenas.

    Neste contexto de autoidentificação, também é de se considerar que, no Censo de 2022, houve maior participação dos indígenas no processo de coleta de dados e o monitoramento passou a ser compartilhado com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), conforme destacado na página oficial gov.br da Secretaria de Comunicação Social5.

    Outra questão relevante é a que diz respeito às terras indígenas e sua ocupação. Consta que da totalidade de indígenas no país, cerca de 622,1 mil (36,73%) residem em Terras Indígenas e 1,1 milhão (63,27%) se encontram fora delas. Três estados respondem por quase metade (46,46%) das pessoas indígenas vivendo nas Terras Indígenas: Amazonas (149 mil), Roraima (71,4 mil) e Mato Grosso do Sul (68,5 mil).


    4 BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Brasil tem 1,69 milhão de indígenas, aponta Censo 2022. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt- br/assuntos/noticias/2023/08/brasil-tem-1-69-milhao-de-indigenas-aponta-censo-2022. Acesso em: 15 ago. 2024.

    5 BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Brasil tem 1,69 milhão de indígenas, aponta Censo 2022. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt- br/assuntos/noticias/2023/08/brasil-tem-1-69-milhao-de-indigenas-aponta-censo-2022. Acesso em: 15 ago. 2024.


    A maior parte dos indígenas do país (44,48%) está concentrada na região Norte, que abriga 753,3 mil indígenas. Em seguida, está a região Nordeste, com 528,8 mil, concentrando 31,22% do total do país. Juntas, as duas regiões respondem por 75,71% desse total. Completam o quadro as regiões Centro-Oeste (11,8% ou 199,9 mil pessoas indígenas), a região Sudeste (7,28% ou 123,3 mil) e Sul (5,2% ou 88 mil)6.

    Assim, dos quase 1,7 milhão de indígenas do Brasil, segundo o Censo de 2022 do IBGE, 6,8% vivem no estado de Mato Grosso do Sul. Diante deste número significativo da população, que hoje, vive neste estado, entendo que é necessário, mesmo que de maneira sucinta, apresentar as políticas indigenistas que foram pensadas e executadas para estes povos, o que será feito mais adiante.


  2. Dos direitos e os Povos Indígenas


    No que diz respeito aos direitos dos povos indígenas, há um novo paradigma de reconhecimento da pluralidade étnica a ser considerado e que está amparado por diversas legislações, normas administrativas, tratados, acordos, declarações e convenções, ratificados pelo Estado brasileiro, em detrimento do posicionamento assimilacionista que pregava até recentemente o suposto e inevitável “fim” destes povos, conforme citado anteriormente. No entanto, mesmo com estes aparentes avanços, a luta dos povos indígenas continua, pois, forças neutralizadoras construídas pela modernidade e a colonialidade continuam em uma constante tentativa de negar e invisibilizar os direitos destes povos.

    A respeito dos novos paradigmas de direito é de se anotar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata sobre Povos Indígenas e Tribais7, a Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas (ONU)


    6 BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Brasil tem 1,69 milhão de indígenas, aponta Censo 2022. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt- br/assuntos/noticias/2023/08/brasil-tem-1-69-milhao-de-indigenas-aponta-censo-2022. Acesso em: 15 ago. 2024.

    7 A Convenção 169 da OIT, sobre povos indígenas e tribais, foi adotada em 27 de junho de 1989, em Genebra, na Suíça, e ratificada pelo Brasil em 25 de julho de 2002. Esta Convenção faz parte do amplo


    de 20078 e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas (OEA) de 20169, dentre outros instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil, os quais, entre outras disposições, afirmam que todos os povos indígenas são livres e iguais em dignidade e direitos e, em consonância com estas normas internacionais, deve-se reconhecer o direito de todos os indivíduos e povos de se considerarem distintos e de serem respeitados como tais.

    É relevante enfatizar que a Constituição Federal de 1988 reconheceu, por diversos de seus dispositivos, o caráter multiétnico da sociedade brasileira e os direitos de coletividades culturalmente diferenciadas, em especial dos povos indígenas. Nesta perspectiva, a Constituição Cidadã, ao garantir aos povos indígenas o direito ao território e aos seus usos e costumes (art. 231 ss.), e, ao ampliar estas garantias aos remanescentes de quilombos (art. 68 ADCT), dentre outros grupos, inaugura um novo paradigma de reconhecimento da pluralidade étnica, cultural e jurídica da sociedade brasileira.

    Portanto, são direitos que não podem ser desconsiderados, haja vista que foram transformados em matéria de ação administrativa para os gestores políticos e públicos brasileiros. Não se trata de mera liberalidade dos poderes da República acatarem ou não tais disposições, pois já foram reconhecidas pelo Estado brasileiro. Ademais, de acordo com Fajardo e Clavero10, nas últimas décadas tem-se difundido na América Latina o reconhecimento constitucional do direito indígena, somando-se


    movimento de diversidade dos povos de todo o mundo que demandaram perante a OIT seus direitos. OIT – ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (1989), Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2004/decreto/ d5051.htm. Acesso em: 30 nov. 2018.

    8 ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (2007). Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, 2007. Disponível em: https://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/ DRIPS_pt.pdf. Acesso em: 17 jul. 2024.

    9 OEA – ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Declaración Americana sobre los Derechos de los Pueblos Indígenas (2016). Disponível em: https://issuu.com/curarevzla/docs/declaraci  n_americana_ sobre_los_de. Acesso em: 28 jul. 2024. 10 FAJARDO, Raquel Yrigoyen. Vislumbrando un Horizonte Pluralista: Rupturas y Retos epistemológicos y políticos. In: CASTRO, Milka. Los desafios de la interculturalidad: identidad, política y derecho. Santiago, Chile: LOM ediciones, 2004; CLAVERO, Bartolomé. Derecho indígena y cultura constitucional en América: Siglo XXI: México, 2009.


    à subscrição de tratados internacionais. Atualmente, são reconhecidas diversas formas de direitos indígenas e estão presentes nas Constituições do Panamá, Honduras, Guatemala, Nicarágua, Colômbia, Paraguai, Peru, Argentina, Bolívia, Equador, Venezuela, Brasil, dentre outras.

    Entre as principais mudanças inseridas nas Cartas Constitucionais dos países latino-americanos, podemos apontar: a ruptura do modelo de Estado-Nação, para dar um passo rumo ao Estado pluricultural; a superação do conceito tutelar dos indígenas como objetos de políticas para defini-los como sujeitos políticos, ou seja, povos com direitos à autodeterminação e autonomia; ruptura de um modelo de democracia excludente para um modelo de articulação democrática da diversidade; a ruptura da identidade Estado-direito ou monismo jurídico para abrir campo a um direito mais pluralista; a superação de um conceito individualista, monocultural e positivista dos direitos humanos para, sobre a base da igual dignidade de culturas, abrir caminho para uma definição e interpretação intercultural dos direitos humanos.

    Assim, tanto na esfera nacional, quanto internacional, verificam-se avanços em termos do reconhecimento de direitos coletivos dos povos indígenas. No entanto, mesmo com todas estas alterações legais, no Brasil, o desconhecimento ou desprezo pelo papel da diversidade, a recusa etnocêntrica de parte da sociedade não indígena, tem sedimentado uma “noção de mundo” quase sempre negativa com relação aos povos indígenas.


  3. Os trabalhadores indígenas e sua relação com o “mundo do trabalho”


    Denota-se que, no Brasil, o desconhecimento ou desprezo pelo papel da diversidade cultural no estímulo e enriquecimento das dinâmicas sociais e, principalmente, a recusa etnocêntrica da contemporaneidade, tem sedimentado uma “sensibilidade de mundo”11 quase sempre negativa dos povos indígenas. Em


    11 Recorre-se à expressão utilizada por Mignolo que prefere destacar “sensibilidad del mundo” no lugar de “visión del mundo”, pois, segundo o autor, o conceito “visión” é um conceito privilegiado na epistemologia ocidental. MIGNOLO, Walter et. al. Retos decoloniales, hoy. In: BORSANI, María


    nome deste desprezo pelo “outro”, inúmeras violências são praticadas, dentre elas a que diz respeito ao “mundo do trabalho”.

    Conforme as palavras de Jônatas Andrade, juiz auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Magistrado do trabalho do Tribunal Regional da 8ª Região (PA/AP), em uma solenidade que marcava o respeito aos povos indígenas, realizada no dia 19 de abril de 2024:


    Muitos trabalhadores indígenas são submetidos a formas de exploração e escravização, incluindo o trabalho forçado, a servidão por dívida, a retenção de documentos, o pagamento de salários abaixo do mínimo legal, a jornada excessiva, a falta de descanso e condições de trabalho insalubres. As mulheres ainda enfrentam desafios adicionais, como a violência de gênero, o assédio e a exploração sexual12.


    Nesta solenidade, que contou com a participação de diversos representantes do Poder Judiciário brasileiro como o Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Subprocuradora-geral do Trabalho, Coordenadora Nacional do Grupo de Trabalho dos Povos Originários, Comunidades Tradicionais e Periféricas do Ministério Público do Trabalho, juiz auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dentre outras, restou registrado que, são diversas as violações dos direitos indígenas. Ficou evidenciado a vulnerabilidade a que esses povos foram submetidos, uma vez que muitos se encontram aldeados em ínfimas reservas, áreas remotas e muitas vezes de difícil acesso, com pouco ou nenhum acesso à informação e a serviços públicos. Ficam expostos a ameaças a direitos básicos e à própria existência, que vão desde danos causados à própria natureza, originado por diferentes atividades econômicas (legais ou não) até o aliciamento para as piores formas de trabalho, segundo classificação da Organização Internacional do Trabalho (OIT)13.


    Eugenia; QUINTERO. Pablo (Comp.). Los desafíos decoloniales de nuestros días: pensar en colectivo. Neuquén: EDUCO - Universidad Nacional del Comahue, 2014. p. 31.

    12 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Secretaria de Comunicação. Dia dos Povos Indígenas:

    aliciamento para piores formas de trabalho é desafio do Sistema de Justiça. Brasília, DF, 19 abr. 2023. Disponível em: https://tst.jus.br/-/dia-dos-povos-ind%C3%ADgenas-aliciamento-para-piores-formas- de-trabalho-%C3%A9-desafio-do-sistema-de-justi%C3%A7a. Acesso em: 20 ago. 2024.

    13 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Secretaria de Comunicação. Dia dos Povos Indígenas: aliciamento para piores formas de trabalho é desafio do Sistema de Justiça. Brasília, DF, 19 abr. 2023.


    É de se notar que, na ocasião desta solenidade, foi constatado que a degradação socioambiental imposta às terras indígenas, também interfere no grau de vulnerabilidade das comunidades. Tanto é que, o estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) identificou que, entre 2011 e 2019, cerca de 74% das terras indígenas no Brasil ficaram mais expostas a estas ameaças, em relação ao período de 2001 e 2010.

    Na pesquisa, “Avaliação da vulnerabilidade ambiental das Terras Indígenas da Amazônia Brasileira”14, restou comprovado que a expansão do desmatamento, os incêndios, a proximidade com rodovias, a degradação florestal e o avanço da mineração e da agropecuária, impactam sobremaneira a disponibilidade de alimento e água das comunidades. Segundo Edelamare Melo, coordenadora Nacional do Grupo de Trabalho dos Povos Originários, Comunidades Tradicionais e Periféricas do Ministério Público do Trabalho, “muitas vezes, essas pessoas se submetem a uma posição degradante de trabalho por imperativo de necessidade. Trabalham em troca de comida. Discordar, por vezes, pode levá-los à morte”15.

    Apesar deste estudo versar sobre a Amazônia brasileira, sabemos que esta não é uma realidade circunscrita àquela região. Diversos estudos, relatórios oficiais, notícias veiculadas nas mídias sociais, nos dão conta que, no Mato Grosso do Sul, muitos povos tiveram suas terras usurpadas, tendo que viver em diminutos espaços o que os levou a necessidade de buscar trabalho fora de suas comunidades tradicionais.


    Disponível em: https://tst.jus.br/-/dia-dos-povos-ind%C3%ADgenas-aliciamento-para-piores-formas- de-trabalho-%C3%A9-desafio-do-sistema-de-justi%C3%A7a. Acesso em: 20 ago. 2024.

    14 ARTIGO avalia a vulnerabilidade ambiental em terras indígenas da Amazônia Brasileira. Observação da Terra, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), 21 dez. 2022. Disponível em http://www.obt.inpe.br/OBT/noticias-obt-inpe/artigo-avalia-a-vulnerabilidade-ambiental-em- terras-indigenas-da-amazonia-brasileira. Acesso em 15 de ago. 2024.

    15 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Secretaria de Comunicação. Dia dos Povos Indígenas: aliciamento para piores formas de trabalho é desafio do Sistema de Justiça. Brasília, DF, 19 abr. 2023. Disponível em: https://tst.jus.br/-/dia-dos-povos-ind%C3%ADgenas-aliciamento-para-piores-formas- de-trabalho-%C3%A9-desafio-do-sistema-de-justi%C3%A7a. Acesso em: 20 ago. 2024.


  4. Os Guarani e Kaiowá e a questão das terras indígenas


    Conforme enunciado anteriormente, para tratarmos sobre a exploração nas relações de trabalho indígena, fora de suas comunidades tradicionais, é necessário verificarmos como ocorreu a usurpação e expropriação e ocupação das terras indígenas, em especial dos Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Neste sentido, é relevante uma digressão histórica sobre as consequências das políticas de Estado implantadas desde remoto período, mas que se acentuaram a partir da Lei de Terras de 1850. Assim que, dentro do processo de ocupação e expropriação das terras indígenas, cabe mencionar a Lei de Terras de 18 de setembro de 1850 sob o aspecto de como se operou a concentração fundiária no Brasil e em especial em Mato Grosso, pois, a partir do instituto da Lei de Terras que se iniciou por todo o Império um movimento de regularização das propriedades rurais, criando-se relações no que diz respeito ao espaço territorial, passando a aparecer nitidamente as leis de mercado. A legalização territorial iniciada a partir da aplicação desta lei gerou vantagens, sobretudo para os posseiros de maior porte que transitaram dessa condição para o patamar de uma classe social cujo traço distintivo passou a ser a grande propriedade rural. Para esta classe, a propriedade da terra era importante mecanismo de controle social e econômico, passando a ser também o principal instrumento de

    monopólio do poder.

    Em Mato Grosso16, a política de alienação indiscriminada de terras continuou marcante em todos os governos do Estado da Primeira República, com um inexpressivo


    16 O atual Estado de Mato Grosso Sul foi criado em 1977 e implantado em 1979, durante o regime ditatorial civil e militar (1964/1985), a partir do desmembramento de 357.145,532 km2 do Estado de Mato Grosso; conforme: OLIVEIRA, Jorge Eremites de. Conflitos pela posse de terras indígenas em Mato Grosso do Sul. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 68, n. 4, out./dez. 2016. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000400002. Acesso em: 15 ago. 2024.


    número de concessões gratuitas efetivadas, deixando evidente a opção dos governantes por uma política de concentração fundiária17.

    A situação em termos de ocupação territorial, nesta porção do sul do Estado de Mato Grosso, era trabalhada no sentido de não se levar em conta as considerações e aspirações de uma grande parcela da população não-indígena (os camponeses) ou mesmo das populações indígenas.

    No caso do estado de Mato Grosso, hoje, Mato Grosso do Sul, pode-se considerar que se ignorou a presença dos indígenas na região. São poucos os registros escritos que comentam sobre essa presença. A maioria dos relatos, ditos “oficiais”, sequer mencionam a ocupação territorial indígena. Falam em povoamento da região, apontando para uma invisibilidade no que se refere a estes povos. O Estado, por meio da política de aldeamento desconsiderou a existência de indígenas nesta região e “naturalizou” a ideia de que eles não necessitavam de terras. Buscou-se demonstrar que estas terras eram desabitadas e, portanto, devolutas, podendo ser concedidas a particulares para a exploração econômica e “desenvolvimento” do Estado. Esta atitude serviria para legitimar a ocupação das terras. Era a “legalização do ilegal”, sendo o elemento estrutural que iria, em momento posterior, respaldar a ordem jurídica brasileira.

    Desta maneira, na segunda metade do século XIX e início do século XX, assiste-se à edição de inúmeras leis e alvarás que concretizaram a extinção de diversos aldeamentos e a venda das terras indígenas. Sob o pretexto de que os indígenas se encontravam dispersos na sociedade envolvente, “integrados” a esta sociedade, promovendo-se a expropriação de suas áreas tradicionais.

    No sul do Estado de Mato Grosso, revelam-se traços indeléveis de expediente de toda ordem para a obtenção ou apropriação das terras situadas dentro do Tekoha Guasu, o grande território Guarani e Kaiowá, realizada com a anuência do Estado que tinha interesse no povoamento e “desenvolvimento” desses “vazios” territoriais


    17 FABRINI, João Edmilson, A posse e concentração de terra no sul de Mato Grosso do Sul. In: ALMEIDA, Rosemeire A. (Org.). A questão agrária em Mato Grosso do Sul: uma visão multidisciplinar. Campo Grande: UFMS. 2008, p. 53-79.


    e populacionais. Além do descalabro muitas vezes ocorrido quanto à titulação de determinadas áreas, o método, na maioria das vezes, utilizado pelos fazendeiros para expropriarem os indígenas de suas terras tradicionais, foi praticamente o mesmo em toda a região. Primeiro, eram feitas advertências. Depois, ameaças e, por fim, ocorria a expulsão. Os indígenas eram transportados, muitas vezes em caminhões, que o próprio órgão indigenista contratava, e depois eram deixados nas margens de rodovias, próximo às reservas já demarcadas no início do século XX. Imediatamente, os fazendeiros ou seus capatazes, queimavam as casas da antiga moradia e passavam o arado na terra para eliminar os vestígios da ocupação tradicional indígena. Inúmeros desses procedimentos estão documentados em ofícios e memorandos do SPI e da FUNAI e descrevem a resistência dos indígenas em abandonar seus Tekoha18.

    Durante a expansão das fazendas, ocorre a instalação de empresas agropecuárias, o comércio cresce, surgem as agências bancárias, as rodovias são ampliadas para escoar a produção, os centros urbanos desenvolvem-se, e as terras são loteadas e ocupadas. Todo esse processo causou impactos consideráveis na organização socioterritorial dos Guarani e Kaiowá19.

    Com seus territórios devastados e tendo que sobreviver em pequenas áreas demarcadas, os Guarani e Kaiowá passaram a buscar trabalhos no entorno, em áreas circunvizinhas. Aparecem em maior escala a busca por trabalhos fora da aldeia, denominado changa. Segundo o antropólogo Ruben Almeida, a changa aparece como uma alternativa de sobrevivência20.


    18 MOREIRA SILVA, Lázaro. A legitimidade do processo de retomada das terras tradicionais pelos índios Kaiowá e Ñandeva em Mato Grosso do Sul. Dissertação (Mestrado em Direito) UNB, Brasília DF, 2002. PACHECO, Rosely A. Stefanes. As demandas indígenas e o direito à terra em uma perspectiva socioambiental: a insolência dos pássaros que insistem em voar. Tese (Doutorado em Direito Socioambiental e Sustentabilidade) - Escola de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2019.

    19 ALMEIDA, Rubem Ferreira Thomaz de. Do desenvolvimento comunitário à mobilização política: o Projeto Kaiowá - Ñandeva como experiência antropológica. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2001.

    20 Apesar da importância, não analisarei neste estudo os Guarani e Kaiowá e a exploração da erva- mate nativa, através da Companhia Mate Larangeira. Neste sentido ver: FERREIRA, Eva M. L.; BRAND,


    Almeida, diz que o Estado, além de não resguardar o direito à terra desses povos, ignorou completamente a existência de um sistema econômico próprio. Os investimentos por parte do Estado foram no sentido de aumentar a produtividade dentro das poucas terras disponíveis ou na especialização da mão de obra, que se voltaria ao mercado regional. “Os planejamentos são feitos de maneira a que os índios se voltem para os trabalhos nos centros urbanos, naturalizando seu processo de desruralização, o que implica a liberação de terras para grandes proprietários”21.

    No entanto, é de se observar que a criação de um termo no idioma Guarani que designe o trabalho fora da aldeia nos mostra como a venda de força de trabalho como alternativa à expropriação e como forma de manter seu modus vivendi tem sido uma realidade desses povos e como isso altera seus modos de ser e viver. Não necessariamente significa, apesar das perdas que tiveram, afirmar que foram integrados à sociedade capitalista ou que perderam seus modos tradicionais e sua cultura, pois, de uma maneira ou outra resistiram a este processo, mas nos mostra como a changa tem sido utilizada como uma das estratégias de sobrevivência frente a ausência de políticas de Estado no que se refere a demarcação das terras indígenas. Neste sentido, observam Ruben Almeida e Thamires Riter de Faria22.

    Há uma vulnerabilização e precarização das condições de vida indígena devido o avanço dos interesses capitalistas em direção aos seus territórios. Esta precarização é fruto de políticas de Estado que escancaram as características da necropolítica, conforme destaca Mbembe23, e que estão presentes na concepção do


    Antonio. Os Guarani e a erva mate. Fronteiras, Dourados, v. 11, n. 19, jan.-jun. 2009, p. 107–126. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/FRONTEIRAS/article/view/451. Acesso em: 15 ago. 2024.

    21 ALMEIDA, Rubem Ferreira Thomaz de. Do desenvolvimento comunitário à mobilização política: o Projeto Kaiowá - Ñandeva como experiência antropológica. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2001, p. 181.

    22 FARIA, Thamires Riter de. Terra, Trabalho e Povos Indígenas no Mato Grosso do Sul: uma análise à Luz do conceito de acumulação primitiva. In: CONGRESSO DE HISTÓRIA ECONÔMICA, 10., 2019, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: USP, 2019. Disponível em: https://congressohistoriaeconomica.fflch.usp.br/sites/congressohistoriaeconomica.fflch.usp.br/file s/inline-files/%23-X-congresso-2019-anais-eletronicos-Thamires-Riter-de-Faria.pdf. Acesso em: 15 ago. 2024; ALMEIDA, Rubem Ferreira Thomaz de. Do desenvolvimento comunitário à mobilização política: o Projeto Kaiowá - Ñandeva como experiência antropológica. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2001.

    23 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Artes & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, dez. 2016, p. 123-151.


    Estado-Nação brasileiro. É notável, ao longo da história, a elaboração e execução de políticas públicas que visam restringir o acesso de determinadas populações a condições mínimas de sobrevivência, precarizando a sua existência.


    1. O trabalho dos indígenas e a violação de seus direitos


Conforme matéria veiculada em diversas mídias, dentre elas a publicada pelo Repórter Brasil em maio de 2024, que embora o estado de Mato Grosso do Sul, não seja o estado com a maior população indígena do país, este estado lidera as estatísticas quando o assunto é a exploração de trabalho em condição análoga à escravidão. Desde 2013, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, 363 indígenas foram resgatados desse tipo de situação em todo o Brasil. Quase 60% das vítimas, 205, eram residentes em Mato Grosso do Sul24.

É de se notar que esta situação de exploração do trabalho indígena em condição análoga à escravidão não ocorre apenas dentro dos limites geográficos de Mato Grosso do Sul. Isto porque, muitos indígenas de diferentes etnias, também são submetidos a esta condição em outros estados da federação. Como exemplo, o jornalista responsável pela matéria do Repórter Brasil, cita àquelas que se deslocam constantemente para a colheita da maçã no estado do Rio Grande do Sul, e, que são submetidas a condições “extenuantes” de trabalho.

De acordo com o último Relatório do Conselho Indigenista Missionário de 2023, a persistência de práticas de exploração de trabalho análogo à escravidão envolvendo indígenas em diversas regiões do Brasil, revela sérias violações de direitos humanos. De acordo com o relatório, no Amazonas e no Mato Grosso do Sul, indígenas dos povos Sateré Mawé e Guarani foram encontrados em condições de trabalho degradantes,


24 PENHA, Daniela. Indígenas do Mato Grosso do Sul são os mais explorados por trabalho escravo. Repórter Brasil, Pinheiros, 07 maio 2024. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2024/05/indigenas-trabalho-escravo-mato-grosso-do-sul. Acesso em: 15 ago. 2024.


incluindo alojamentos precários, falta de equipamentos de proteção, além da presença de crianças e adolescentes em atividades laborais.


A situação denunciada pelos indígenas Guarani Kaiowá e Terena no Rio Grande do Sul, envolvendo a colheita de maçã em Vacaria, também evidencia violações graves. Em vídeos, gravados pelos próprios trabalhadores indígenas, eles mostram banheiros precários, relatam ferimentos causados por tratores e contam que foram obrigados a consumir alimentos estragados25.


Se estas denúncias não fossem suficientes, é necessário destacar o trabalho da Procuradora do Trabalho Coordenadora do Sub-GT Povos Originários, Comunidades Tradicionais e Periféricas, Juliana Mafra Beraldo e o processo de acompanhamento e escuta realizado no Tekoha, território tradicional Guarani e Kaiowá Gwapo’y Mirim Tujury, localizado no estado de Mato Grosso do Sul, região fronteira com o Paraguai no ano de 202226.

Conforme evidenciado, este Grupo de Trabalho tem como Coordenadora do Sub-GT Povos Originários tal Procuradora, que tem estabelecido um processo de escuta com os Guarani e Kaiowá, em especial em áreas indígenas que sofrem violências por litígios territoriais, a qual tem desempenhado um importante trabalho com os povos indígenas, no caso aqui apresentado: comunidades Guarani e Kaiowá no sul do estado de Mato Grosso do Sul27.

Uma das ações deste Grupo de Trabalho, diz respeito à ida até o território tradicional Guarani e Kaiowá Guapo`y Mirim Tujury, localizado em Amambai,


25 Conselho Indigenista Missionário. Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil: dados de 2023. 21ª. ed. Brasília, DF: Conselho Indigenista Missionário. Brasília, DF: Conselho Indigenista Missionário, 2024.

26 Para melhor explicar sobre a atuação deste grupo de Trabalho, consta que ocorreu a nível federal a criação do Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais e Periféricas”, vinculado à Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo e ao Tráfico de Pessoas” no âmbito do Ministério Público do Trabalho.

27 Tive a oportunidade, junto com outros pesquisadores de acompanhar parte do trabalho de campo, sempre conduzido com muita diligência os processos de escutas e consequente expedição de relatórios das ações. Tal ação ocorreu em junho de 2022 na área de Guapo`y Mirim Tujury, localizado em Amambai, município de Mato Grosso do Sul. Tal Relatório também foi encaminhado aos Ministérios Públicos Federal e Estadual e à Defensoria Pública da União.


município de Mato Grosso do Sul, região fronteiriça com o Paraguai e que tem uma população estimada de 8 mil pessoas. Consta que esta área reivindicada pelos Guarani e Kaiowá foi cenário de um conflito, no final de junho de 2022 e que envolveu indígenas, fazendeiro e forças policiais.

Tal conflito, resultou na morte de um indígena de 42 anos e deixou em torno de 10 (dez) outros integrantes da comunidade gravemente feridos, entre eles 5 jovens menores de idade. É de se destacar que alguns feridos foram hospitalizados, além outros que não buscaram assistência médica, pois temiam represálias ao buscarem atendimento nos hospitais da localidade28. Tal evento ficou conhecido como “Massacre de Guapo`y”.

Neste processo de acompanhamento, conforme consta do Relatório de Inspeção Tekoha Gwapo’y Mirim Tujury do povo Guarani e Kaiowá em Amambai, elaborado pela Procuradora do Trabalho:


Em razão da necessidade de medidas urgentes para a defesa dos direitos sociais dos indígenas, nos termos do Artigos 2º, 2, b, e 6º da Convenção 169 da OIT, foi oficiado ao Ministério da Saúde e para a Secretaria Especial de Saúde Indígena - SESAI/Distrito Sanitário Especial Indígena – DSEI, responsável pelo atendimento à Aldeia Amambai MS, com cópia do relatório preliminar, solicitando atendimento médico-psicológico, com equipe multidisciplinar aos indígenas da Tekoha Gwapo’y Mi Tujury do Povo Guarani e Kaiowá em Amambai, Mato Grosso do Sul e a análise da potabilidade da água consumida pela comunidade, retirada de um poço no local29.


Durante a diligência, realizada pela Procuradora no Tekoha Gwapo’y Mirim Tujury, recebeu denúncias sobre a exploração de trabalho infantil indígena, com o seguinte teor:


28 Muitos indígenas mesmo feridos, temendo represálias, mesmo feridos se refugiaram nas matas localizadas nas cercanias da comunidade.

29 Relatório Parcial – Segurança – Acesso à Justiça. Comissão Transitória Indígena, Campo Grande/MS, 20 de Abril de 2023. Elaborado por Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais Quilombolas, de Terreiro, Ribeirinhas e Periféricas”. Relatório de Inspeção Tekoha Gwapo’y Mi Tujury do Povo Guarani e Kaiowá em Amambai, Mato Grosso do Sul, em 07 de julho de 2022. p.9. Relatório enviado pela Coordenadora Nacional, procuradora, dra Juliana Beraldo Mafra do GT Povos Originários, Comunidades Tradicionais e Periféricas, CONAETE, Ministério Público do Trabalho.


Que na [nome da empresa]30 eles sabem que criança está descascando mandioca, que a pessoa que quer pegar mandioca para descascar é só chegar lá e trabalhar, que eles pagam 4 reais a caixa, que não sabe quantos quilos tem na caixa, que se a criança quiser pegar mandioca para descascar é só chegar lá, tem um empregado que busca os indígenas e leva no barracão, no barracão tem criança, tem mulher e tem criança; os indígenas trabalham lá de segunda a sábado; que trabalham de 7h às 11h, de 12h às 17h; que alguns assinam a carteira e outros não tem carteira assinada, que quando o Ministério do Trabalho vai ficam só os de carteira assinada, tem muita gente que trabalha no barracão, entra uma vã na aldeia para levar31.


É de se somar que, segundo relatos da comunidade Tekoha Gwapo’y Mirim Tujury, “a maioria dos homens estão desempregados por causa da retomada territorial”. Destacam que: “o patrão demitiu por causa da retomada”32. E prosseguem enfatizando que: “[..] que lá na cidade tem muito preconceito, que só porque é índio o pessoal não te contrata, que entrou na retomada porque é vítima de perseguição”33.

Durante este processo de diligência e escuta, apurou-se que a maioria das mulheres naquela comunidade estavam desempregadas. De acordo com um dos relatos: “Não contratam de doméstica, porque tem muito preconceito”. Em outro relato, nos disseram que, mesmo uma indígena que possui ensino superior não consegue emprego: “Porque ela é índia”. Tal afirmação foi feita por um jovem indígena que narrava sobre a falta de oportunidade de trabalho para sua


30 Nome da empresa omitido para não frustrar as investigações. Determinada a distribuição de notícia de fato para a apuração da irregularidade, perante a 24ª Procuradoria Regional do Trabalho.

31 Relatório Parcial – Segurança – Acesso à Justiça. Comissão Transitória Indígena, Campo Grande/MS, 20 de Abril de 2023. Elaborado por Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais Quilombolas, de Terreiro, Ribeirinhas e Periféricas”. Relatório de Inspeção Tekoha Gwapo’y Mi Tujury do Povo Guarani e Kaiowá em Amambai, Mato Grosso do Sul, em 07 de julho de 2022. p.13.

32 Relatório Parcial – Segurança – Acesso à Justiça. Comissão Transitória Indígena, Campo Grande/MS, 20 de Abril de 2023. Elaborado por Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais Quilombolas, de Terreiro, Ribeirinhas e Periféricas”. Relatório de Inspeção Tekoha Gwapo’y Mi Tujury do Povo Guarani e Kaiowá em Amambai, Mato Grosso do Sul, em 07 de julho de 2022. p.15.

33 Relatório Parcial – Segurança – Acesso à Justiça. Comissão Transitória Indígena, Campo Grande/MS, 20 de Abril de 2023. Elaborado por Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais Quilombolas, de Terreiro, Ribeirinhas e Periféricas”. Relatório de Inspeção Tekoha Gwapo’y Mi Tujury do Povo Guarani e Kaiowá em Amambai, Mato Grosso do Sul, em 07 de julho de


companheira34. Nesta oportunidade as mulheres indígenas reforçaram a necessidade de serem aceitas pela sociedade envolvente e reconhecidas como profissionais. Uma técnica em enfermagem, declarou: “mesmo que entregue currículo em todo lado não aceitam, jogam fora nossas folhas, no lixo”35.

Indagados naquela ocasião, sobre como gostariam de trabalhar, quais seriam as condições necessárias para exercerem seu trabalho, os indígenas da comunidade expuseram sobre as principais dificuldades que encontram para a prática de seu trabalho tradicional. Tais como: caçar, pescar e fazer roça, tendo em vista a violência que assola a região. Enfatizaram que temiam serem assassinados ou feridos enquanto exercem seu trabalho tradicional.

Em um dos questionamentos feitos pelo Grupo de Trabalho: “Hoje, qual a

melhor forma que vocês gostariam de trabalhar?”, responderam:


Olha, agora já, a gente vê que no tempo do meu pai, da minha mãe, tinha muitas assim, né, mato, de caçar, assim que fala, né? Mas hoje em dia, não, hoje em dia não tem mais! Então você entra ali na fazenda, já leva um tiroteio. Hoje você vai ali procurar um remédio caseiro, o fazendeiro já fala que você tá roubando. É toda vida assim. Os índios, qualquer coisinha falam assim ‘os índio é ladrão, os índio rouba’. Ele, não, ele não rouba. Mas eu acho que na minha cabeça, não é isso não. Os índios, não rouba. Mas o brasileiro, quando rouba, rouba grande. Mas os índios não. Os índios, quando entra ali na fazenda, vai ali procurar ou procurar ali, pra trazer alguma ... ou vai pescar ali, aí já atira em cima. Aí fala aquele ali é ladrão. Aquele ali vai roubar de nós. É assim, desse jeito. E os índios sempre fica quieto. [...]. Que nem aqui. Aqui todo mundo sabe que aqui é aldeia, reserva indígena. Gostaríamos de trabalhar por conta própria, porque meu pai nos ensinou assim. Meu pai, minha avó, trabalhava só na roça, e aqui na aldeia atual, já não tem mais espaço, e como a gente tem que é marcado, todo mundo sabe que aquele lugar era nosso, então a gente pergunta porque teve que sair daqui e minha mãe fala que o fazendeiro chegava, queimava a casa e


34 Relatório Parcial – Segurança – Acesso à Justiça. Comissão Transitória Indígena, Campo Grande/MS, 20 de Abril de 2023. Elaborado por Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais Quilombolas, de Terreiro, Ribeirinhas e Periféricas”. Relatório de Inspeção Tekoha Gwapo’y Mi Tujury do Povo Guarani e Kaiowá em Amambai, Mato Grosso do Sul, em 07 de julho de 2022. p.16.

35 Relatório Parcial – Segurança – Acesso à Justiça. Comissão Transitória Indígena, Campo Grande/MS, 20 de Abril de 2023. Elaborado por Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais Quilombolas, de Terreiro, Ribeirinhas e Periféricas”. Relatório de Inspeção Tekoha Gwapo’y Mi Tujury do Povo Guarani e Kaiowá em Amambai, Mato Grosso do Sul, em 07 de julho de


expulsava nós. Como os fazendeiro é forte, eles vem empurrando pra dentro e como índio não quer brigar, a gente foi indo36.


Em uma das escutas realizadas, houve relato sobre “atravessadores” que segundo o nosso interlocutor, eram pessoas que buscavam aliciar os indígenas na comunidade para trabalharem no país vizinho, Paraguai, inclusive, para o tráfico ilícito de drogas. E, que tal aliciamento ocorria sem o conhecimento prévio dos indígenas sobre a ilicitude de tal “trabalho”.

Relataram que ao chegarem no determinado local de trabalho, verificaram que se tratava de trabalho ilícito e que ao perceberem a situação não puderam voltar para a comunidade antes que terminassem tal “contrato” de trabalho. Neste momento, os indígenas foram orientados a comunicarem imediatamente tais ocorrências ao Ministério Público do Trabalho.37

Neste momento, um indígena também relatou ter trabalhado na região, como peão de fazenda e, em troca recebia apenas alimentação, mas que atualmente, cansado daquela situação, passou a trabalhar na própria roça, em regime de economia familiar. Perguntado sobre como gostaria de trabalhar, declarou o desejo de continuar trabalhando na roça, plantando alimentos e caçando. Por outro lado, contou que atualmente, não há animais suficientes para a caça. Além disso, afirmou a necessidade de recuperarem as plantas medicinais tradicionais, “remédios caseiros do mato”, que não são mais localizadas tendo em vista o desmatamento “para abrir fazenda”. Esclareceu que precisam de equipamentos e insumos agrícolas para plantarem, bem como políticas públicas de educação, saúde e saneamento básico:


36 Relatório Parcial – Segurança – Acesso à Justiça. Comissão Transitória Indígena, Campo Grande/MS, 20 de Abril de 2023. Elaborado por Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais Quilombolas, de Terreiro, Ribeirinhas e Periféricas”. Relatório de Inspeção Tekoha Gwapo’y Mi Tujury do Povo Guarani e Kaiowá em Amambai, Mato Grosso do Sul, em 07 de julho de 2022.

37 Relatório Parcial – Segurança – Acesso à Justiça. Comissão Transitória Indígena, Campo

Grande/MS, 20 de Abril de 2023. Elaborado por Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades


[...] que quer plantar alimentos: arroz, feijão catador, melancia, abóbora, morango, cana de açúcar, batata, mandioca, milho cateto branco e amarelo, milho pipoca (awate mitã), dentre outros; que quer continuar criando animais; que a criação de animais é para as crianças da comunidade também; que antigamente Guapoy era “mato”; que se o mato acabar, acabam os remédios e o futuro; que tem que recuperar os remédios caseiros do mato, porque foram derrubados para abrir as fazendas; que a água é o sangue do mato; que a água está quase secando porque derrubaram o mato; que tem o costume de pescar no açude; que quer criar mais peixes; que para caçar tem que ir muito longe, mas é difícil achar caça; que tem vontade que possa voltar a caçar cateto, queixada, tatu, anta, seriema, paca; que hoje está difícil de achar; que plantar, pescar e caçar é o futuro para os Kaiowá; que para viver do jeito que querem tem que “plantar árvores”; que quer que volte a ter o mato [...]38


Diante da realidade encontrada na comunidade Tekoha Gwapo’y Mirim Tujury, a Coordenadora do Sub-GT Povos Originários, do GT Povos originários, Comunidades Tradicionais Quilombolas, de Terreiro, Ribeirinhas, e Periféricas, destacou que à luz dos artigos 5º e 6º da Constituição da República e art. 2º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho(OIT), Sobre Povos Indígenas e Tribais, os agentes públicos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos dos povos indígenas e a garantir o direito à sua integridade. E, considerando o constatado no Tekoha Gwapo’y Mirim Tujury, concluiu que houve violação de direitos fundamentais individuais e sociais dos Guarani e Kaiowá. Foi verificada a:

“[...] violação do direito à vida, à propriedade, à liberdade, à igualdade, à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância e à assistência aos desamparados”39.


38 Relatório Parcial – Segurança – Acesso à Justiça. Comissão Transitória Indígena, Campo Grande/MS, 20 de Abril de 2023. Elaborado por Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais Quilombolas, de Terreiro, Ribeirinhas e Periféricas”. Relatório de Inspeção Tekoha Gwapo’y Mi Tujury do Povo Guarani e Kaiowá em Amambai, Mato Grosso do Sul, em 07 de julho de 2022. p.18-19.

39 Relatório Parcial – Segurança – Acesso à Justiça. Comissão Transitória Indígena, Campo Grande/MS, 20 de Abril de 2023. Elaborado por Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais Quilombolas, de Terreiro, Ribeirinhas e Periféricas”. Relatório de Inspeção Tekoha Gwapo’y Mi Tujury do Povo Guarani e Kaiowá em Amambai, Mato Grosso do Sul, em 07 de julho de 2022. p.32.


É de se notar, conforme escreve Nelson40,


Em sede de Corte Interamericana de Direitos Humanos existe um rol não exaustivo de direitos humanos listados com normas de natureza jus cogens, como a proibição de discriminação; vedação a tortura; princípio do non- refoulement; proibição de escravidão e práticas semelhantes, dentre outros.


Diante disso, cabe ressaltar que as violências sofridas, incluindo a violação às condições dignas de trabalho, não são novas para os povos indígenas. Neste sentido, é importante destacar uma das iniciativas do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região, levada a cabo por uma ação conjunta do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho no estado de Mato Grosso do Sul, ainda no ano de 2003, que tinha entre seus objetivos visibilizar as relações de trabalho e os povos indígenas enquanto sujeitos de direitos.

Trata-se de audiências que foram realizadas na comunidade indígena Jaguapiru, localizada no município de Dourados, estado de Mato Grosso do Sul. Este foi um momento inovador e desafiador para o Poder Judiciário do Trabalho, pois, pela primeira vez, sob este formato, de justiça itinerante, estes povos foram escutados com acuidade e, portanto, visibilizados. Naquela oportunidade, Guarani, Kaiowá e Terena, não significam apenas números em estatísticas, processos, mas pessoas que buscavam a guarida do Poder Judiciário. Conforme palavras do então ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Lélio Bentes, tratava-se de um “momento histórico para a Justiça do Trabalho e para a Justiça brasileira”41. Eram ações, que dentre outras conquistas, visavam a garantia dos direitos indígenas e o acesso ao Judiciário.


40 NELSON, Rocco A. R. R. “Escravidão contemporânea”: em busca da justiça sem prazo de validade. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 7, p. 1-30, 2024. DOI: https://doi.org/10.33239/rjtdh.v7.1. p.15.

41 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Secretaria de Comunicação. Audiências trabalhistas em aldeias indígenas serão periódicas. Brasília, DF. Disponível em: https://www.tst.jus.br/-

/audiencias-trabalhistas-em-aldeias-indigenas-serao-periodicas. Acesso em: 20 jul. 2023.


Assim, no dia 20 de agosto de 2003, foi realizada a primeira audiência trabalhista em uma área indígena em Mato Grosso do Sul. E, para a realização de tal ação, os(as) servidores(as) da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho deslocaram-se até a área indígena Jaguapiru, local onde vivem indígenas de diversas etnias. Dentre elas os Guarani, os Kaiowá e os Terena42.

Consta que servidores do Ministério Público do Trabalho verificaram que havia uma situação de vulnerabilidade e exploração dos trabalhadores indígenas, no entanto, mesmo diante desta vulnerabilidade, eles não buscavam guarida no sistema judicial. Constataram que era ínfimo o número de trabalhadores, e que mesmo sofrendo exploração, por parte do empregador, não recorriam ao Poder Judiciário. E, em uma atitude de diligência, membros do Ministério Público do Trabalho buscaram apoio junto a juízes do Trabalho, dentre estes cito o Juiz titular da 2ª Vara do Trabalho de Dourados, Dr. Francisco das Chagas Lima Filho, que constatou que poderiam minorar os entraves para que os indígenas tivessem o devido acesso à justiça efetivado.

O contexto de vulnerabilidade, no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores indígenas era tamanho que, o então ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Lélio Bentes, em 20 de agosto de 2003, enfatizou:


(...) a Justiça está indo ao encontro dessas comunidades mais excluídas. Nós todos sabemos, ninguém ignora, o descaso a que foi submetida a cultura indígena por todos esses anos. Alguns anos atrás, havia uma situação de penúria de toda essa comunidade, tendo em vista que os contratos de trabalho eram celebrados de forma coletiva e eram encarados como contratos de natureza civil. Imagine que esses índios não tinham sequer as suas carteiras de trabalho assinadas, não tinham direitos e, por uma ação conjunta do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho aqui no Mato Grosso do Sul avançou-se no sentido de que eles passassem a ter os seus contratos reconhecidos. Só que ainda restam direitos a serem satisfeitos, como, por exemplo, o recolhimento do FGTS e, nesse sentido, a


42 A aldeia Jaguapiru, também identificada como Reserva Indígena de Dourados (RID) foi criada por meio do Decreto n º 401 de 03/09/1917, pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Entre os anos 1915 e 1928, o SPI, criou oito reservas indígenas no sul do estado, para onde todos os indígenas da região deveriam se dirigir. Tal medida tinha como intuito liberar as terras para as denominadas “frentes de expansão”.


comunidade indígena está demonstrando sim uma maior consciência dos seus direitos, na medida em que pleiteia o pagamento dessas vantagens43.


Estas ações que buscavam o acesso à Justiça para povos indígenas em Mato Grosso do Sul, promovidas pela atuação do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho, ocorreram em um momento em que os direitos indígenas recém haviam sido elencados na Constituição Federal de 1988. Além do que, a Convenção 169 da OIT, um dos principais documentos que dispõe sobre os direitos indígenas, havia acabado de ser ratificada pelo Brasil em 2002. Portanto, a temática dos direitos dos povos indígenas era algo pouco conhecido e reconhecido pelo Judiciário brasileiro.

Assim, na área indígena Jaguapiru, foram realizadas diversas audiências que envolviam, de um lado, especialmente os empresários, representantes das usinas sucroalcooleiras e de outro, os indígenas que trabalharam para as usinas, em um período que correspondia as décadas de 1980 e 1990. É de se observar que, com o Juízo itinerante, as audiências foram realizadas em um espaço cedido pelo Centro Universitário da Grande Dourados (Unigran), localizado dentro da área indígena Jaguapiru.

Sobre os acordos trabalhistas realizados nas audiências, que ocorreram nos dias 20 e 21 de agosto de 2003, consta que:


Os acordos trabalhistas realizados entre índios da aldeia de Jaguapiru (MS) e usinas de álcool e açúcar de Mato Grosso do Sul atingiram R$ 27.795,00, soma que será paga de imediato aos indígenas que trabalharam para essas usinas ao longo dos últimos vinte anos. As audiências nas quais os acordos foram homologados foram realizadas na própria aldeia de Jaguapiru nos últimos dias 20 e 21 por juízes da Vara Itinerante do Tribunal Regional do Trabalho do Estado (24ª Região)44.


43 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Secretaria de Comunicação. Audiências trabalhistas em aldeias indígenas serão periódicas. Brasília, DF. Disponível em: https://www.tst.jus.br/-

/audiencias-trabalhistas-em-aldeias-indigenas-serao-periodicas. Acesso em: 20 jul. 2023.

44 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Secretaria de Comunicação. Acordos entre indígenas e usineiros somam quase R$ 28 mil. Brasília, DF. Disponível em: https://www.tst.jus.br/-/acordos- entre-indigenas-e-usineiros-somam-quase-r-28-mil. Acesso em: 20 jul. 2023.


De acordo com a nota:


Das 106 audiências realizadas em Jaguapiru, 32 resultaram em acordo. Além das conciliações, houve seis desistências e 67 ações tiveram seu desfecho adiado. Dessas, 39 ações foram adiadas para instrução (reunião de provas), 16 para novo julgamento, seis por não comparecimento dos trabalhadores e seis a pedido das partes, para realização de uma nova audiência inicial45.


Dos acordos trabalhistas realizados nestas audiências itinerantes, muitos diziam respeito à reivindicação dos depósitos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) referentes ao período trabalhado. Mas havia outros direitos que lhes eram devidos, tais como: férias, décimo terceiro salário e anotação do tempo trabalhado em carteira.

Das reclamações trabalhistas levadas a juízo, pode-se notar que os indígenas eram contratados por temporada, permaneciam nos canaviais localizados no estado de Mato Grosso do Sul por cerca de 60, 75 ou até 90 dias46. Tratava-se de um contrato, de natureza civil e que era assinado por equipes de trabalhadores e autorizado pelo órgão indigenista, a Fundação Nacional do Índio (Funai) por meio do chamado "Pacto Indígena". Entretanto, conforme as palavras do presidente do Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso do Sul (24ª Região), juiz João de Deus Gomes de Sousa, tratava-se de uma evidente relação de trabalho: "Por conta desse contrato, os indígenas não tinham a carteira assinada e nenhum direito a férias e décimo-terceiro salário proporcional, aviso prévio ou a depósitos do FGTS, nada".47


45 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Secretaria de Comunicação. Acordos entre indígenas e usineiros somam quase R$ 28 mil. Brasília, DF. Disponível em: https://www.tst.jus.br/-/acordos- entre-indigenas-e-usineiros-somam-quase-r-28-mil. Acesso em: 20 jul. 2023.

46 Sobre este trabalho, o antropólogo Rubem Ferreira Thomaz de Almeida (1991), descreveu em seu trabalho o que os Guarani Kaiowá e Ñandeva chamam de changa que, conforme explica o autor, é o trabalho realizado fora das áreas indígenas. À época era realizado geralmente em fazendas circunvizinhas e usinas de álcool. ALMEIDA, Rubem Ferreira Thomaz de. Do desenvolvimento comunitário à mobilização política: o Projeto Kaiowá - Ñandeva como experiência antropológica. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2001.

47 ALMEIDA, Rubem Ferreira Thomaz de. Do desenvolvimento comunitário à mobilização política: o Projeto Kaiowá - Ñandeva como experiência antropológica. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2001.


Uma questão importante, segundo Correa,48 historiador que estudou a instalação das primeiras usinas de cana no estado de Mato Grosso do Sul e o recrutamento de mão de obra indígena para o trato canavieiro é que: “nos contratos firmados, não havia o registro de crianças que se deslocavam junto com os mais velhos, entretanto, grande quantidade de crianças e jovens de 15 a 18 anos acompanhavam os adultos às usinas”.

É de se considerar que uma das dificuldades enfrentadas naquele momento pela equipe que conduzia as audiências era a fixação do período trabalhado. Observou-se que além da completa ausência de registros pelas empresas, a maioria dos trabalhadores indígenas não possuíam documentos de identidade ou carteira de trabalho à época da contratação pela agroindústria sucroalcooleira. De acordo com as palavras do juiz do Trabalho, Dr. Francisco das Chagas Lima Filho: "A maioria dos indígenas desta aldeia não tinham como comprovar o período real da prestação de serviço, uma vez que ou não possuíam qualquer documentação ou utilizaram carteiras de trabalho emprestadas por colegas à época"49.

Quanto a questão da falta de documentação, está ainda persiste visto que na matéria realizada recentemente, em 07 (sete) de maio de 2024 pelo Repórter Brasil, identificou-se que a falta de documentação é uma das dificuldades no resgate dos trabalhadores50. E, sobre as violações nas relações de trabalho, que vão desde a falta de documentação, até em alguns casos de indígenas que resgatados de condições de trabalho análogas à escravidão, Paulo Douglas Almeida de Moraes, Procurador do Trabalho e Coordenador regional de erradicação do trabalho escravo no estado de


48 CORREA, Felipe Megeredo. O trabalho indígena na usina Passa Tempo em Rio Brilhante-MS (décadas de 1980 e 1990). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Dourados/MS, 148p., 2015, p. 77. Disponível em: https://www.ppghufgd.com/wp-content/uploads/2017/03/O- TRABALHO-IND%C3%8DGENA. pdf. Acesso em: 29 nov. 2024.

49 O “empréstimo de documentos”, ainda é uma prática comum entre os Guarani e Kaiowá.

50 PENHA, Daniela. Indígenas do Mato Grosso do Sul são os mais explorados por trabalho escravo. Repórter Brasil, Pinheiros, 07 maio 2024. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2024/05/indigenas-trabalho-escravo-mato-grosso-do-sul. Acesso em 15 de ago. de 2024.


Mato Grosso do Sul, adverte: “Estamos diante de um trabalhador submetido às piores condições possíveis. E, desde a colonização, vemos mais do mesmo”.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Sabe-se que a violência perpetrada contra os povos indígenas é um dos mais graves problemas a ser enfrentado pela sociedade contemporânea. Ela não obedece a fronteiras, princípios ou leis. Ela ocorre cotidianamente no Brasil e em outros países, apesar de existirem inúmeros mecanismos legais de proteção aos direitos humanos.

Trata-se de uma violência avassaladora e que demonstra as consequências de uma política indigenista praticada pelo Estado brasileiro que sempre desconsiderou os povos indígenas enquanto sujeito de direitos. Depreende-se que estas políticas foram pensadas no decorrer do processo histórico, sem levar em consideração os direitos destes povos.

Diante disso, neste trabalho busquei destacar das violências vivenciadas nas relações de trabalho, haja vista que diversos estudos, relatórios e matérias veiculadas nas mídias nos apresentam que há no decorrer do tempo, uma persistência na violação dos direitos dos trabalhadores indígenas. E, consequentemente, a recorrência de práticas de exploração de trabalho análogo à escravidão, envolvendo indígenas em diversas regiões do Brasil, o que revela sérias violações aos direitos humanos. Tanto é que, no estado de Mato Grosso do Sul, recentemente, indígenas Guarani e Kaiowá foram encontrados em condições de trabalho degradantes, incluindo alojamentos precários, falta de equipamentos de proteção, além da presença de crianças e adolescentes em atividades laborais.

Desde 2013, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, 363 indígenas foram resgatados desse tipo de situação em todo o Brasil. Quase 60% das vítimas, 205, eram do Mato Grosso do Sul. É de se anotar que a situação vivenciada por estes povos neste estado, se somam a outros povos que, aldeados, vivendo em áreas remotas e de difícil acesso, com pouco ou nenhum acesso à informação e a


serviços públicos, ficam expostos a ameaças a direitos básicos e à própria existência51.

É uma violência que não cessa, apesar dos esforços realizados por alguns órgãos parceiros do Poder Judiciário. Neste sentido citamos as audiências trabalhistas realizadas pela justiça itinerante, ainda no ano de 2003, na área indígena Jaguapiru, localizada no município de Dourados, estado de Mato Grosso do Sul e as ações mais recentes efetivadas pelo Grupo de Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais e Periféricas”, vinculado à Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo e ao Tráfico de Pessoas” do Ministério Público do Trabalho, representado pela Procuradora do Trabalho Juliana Beraldo Mafra, Coordenadora do Sub-GT Povos Originários.

Assim que, a garantia de condições dignas de trabalho para os povos indígenas é um desafio que requer ações coordenadas, tanto do Estado, quanto dos empregadores. Ademais de observarem os direitos dos povos indígenas. Especialmente àqueles que são considerados verdadeiros princípios fundamentais e estão dispostos, entre outros documentos, na Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que passou a disciplinar uma nova relação do Estado nacional com os seus povos.

No entanto, enquanto não houver uma resposta para a questão que diz respeito às terras indígenas, “qualquer política de Estado, de cunho assistencialista às comunidades Guarani e Kaiowá, será apenas paliativa”. Tal como dispõe a orientação do pesquisador Martins, ainda no ano 200252.

Além do que, não podemos olvidar da degradação ambiental a que foram expostas tais populações. Tanto é que, o estudo, denominado “Avaliação da


51 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Secretaria de Comunicação. Dia dos Povos Indígenas: aliciamento para piores formas de trabalho é desafio do Sistema de Justiça. Brasília, DF, 19 abr. 2023. Disponível em: https://tst.jus.br/-/dia-dos-povos-ind%C3%ADgenas-aliciamento-para-piores-formas- de-trabalho-%C3%A9-desafio-do-sistema-de-justi%C3%A7a. Acesso em: 20 ago. 2024.

52 MARTINS, Gilson Rodolfo. A problemática fundiária no âmbito da Justiça Federal em Mato Grosso do Sul. Anais VI Encontro de História de Mato Grosso do Sul, 2002, p.13.


vulnerabilidade ambiental das Terras Indígenas da Amazônia Brasileira”53, apontou como principais problemas: a expansão do desmatamento, os incêndios, a proximidade com rodovias, a degradação florestal e o avanço da mineração e da agropecuária. Esses impactos afetam sobremaneira a disponibilidade de alimento e água. “Muitas vezes, essas pessoas se submetem a uma posição degradante de trabalho por imperativo de necessidade. Trabalham em troca de comida. Discordar, por vezes, pode levá-los à morte”54. Por fim, apesar do estudo mencionado, se referir às terras indígenas da Amazônia brasileira, sabemos que a situação da vulnerabilidade e degradação ambiental, não é exclusiva daquela região, mas tem impactado a vida nos territórios Guarani e Kaiowá que têm insistido em afirmar com suas vivências: que “outra realidade é possível”.


REFERÊNCIAS


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53 ARTIGO avalia a vulnerabilidade ambiental em terras indígenas da Amazônia Brasileira. Observação da Terra, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), 21 dez. 2022. Disponível em http://www.obt.inpe.br/OBT/noticias-obt-inpe/artigo-avalia-a-vulnerabilidade-ambiental-em- terras-indigenas-da-amazonia-brasileira. Acesso em 15 de ago. 2024.

54 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Secretaria de Comunicação. Dia dos Povos Indígenas: aliciamento para piores formas de trabalho é desafio do Sistema de Justiça. Brasília, DF, 19 abr. 2023. Disponível em: https://tst.jus.br/-/dia-dos-povos-ind%C3%ADgenas-aliciamento-para-piores-formas- de-trabalho-%C3%A9-desafio-do-sistema-de-justi%C3%A7a. Acesso em: 20 ago. 2024.


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Rosely A. Stefanes Pacheco

Professora da Faculdade de Ciências Sociais, Curso de Direito da Universidad Academia de Humanismo Cristiano (UAHC), e Professora do curso de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UFMS). Pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisa, Gênero, Raça e Etnia (CEPEGRE/UEMS/CNPq) e Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (CEPEDIS/PUC/PR/CNPq), Brasil. Doutora em Direito Socioambiental e Sustentabilidade na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Mestre em História Indígena pela UFMS. Especialização em Antropologia Jurídica pela Universidad de Chile (UCH). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2559462109019621. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5148-3565. E- mail: roselystefanes@gmail.com.