Editorial: o Trabalho e as Violências



Editorial: Work and Violence

Editorial: Trabajo y Violencia


Daniela Muradas Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Lattes: http://lattes.cnpq.br/0010322004110521 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5617-2958


Maria Jose Romero Rodenas Universidade de Castilla-La Mancha (Espanha) ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9814-2178


Hugo Barretto Ghione

Universidad de la República (Uruguai)

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1925-8322


RESUMO

Editorial de apresentação do Dossiê Trabalho e Violências.


PALAVRAS-CHAVE: Trabalho. Violência. Convenção 190. OIT. Dossiê.


ABSTRACT

Editorial presenting the Dossier on Work and Violence.


KEYWORDS: Work. Violence. Convention 190. ILO. Dossier.


RESUMEN

Editorial de presentación del Dossier sobre Trabajo y Violencia.


PALABRAS CLAVE: Convention 190. Violencia. Convenio 190. OIT. Dossier.


Os diversos campos do saber e estudos de distintas áreas denunciam o quadro de violências e assédios que antagonizam com a promoção da cultura de paz. Como fenômeno que perpassa diversas relações sociais, inclusive as relações de trabalho, a eliminação da violência encontra-se hoje na centralidade da agenda internacional.


A Organização Mundial da Saúde (OMS), há duas décadas, aborda o fenômeno das violências como matéria de saúde pública, definindo-as como fatores


externos que são capazes de afetar a saúde e o bem-estar das pessoas. A noção de externalidade, inclusive acolhida no sistema brasileiro de saúde e que estrutura o sistema de classificação de mortalidades, não reflete o fenômeno das violências e assédios intrínsecos à humanidade, ao menos no campo da intersubjetividade e da violência social.

As violências, em todas as suas manifestações, também são reconhecidas em sua relação com a segurança e saúde ocupacionais e ao bem-estar no trabalho. Fatores relacionados com o conteúdo do trabalho e setores do mercado de trabalho, os métodos de organização do trabalho, os valores corporativos podem afetar a saúde e o bem-estar e comparecem como riscos psicossociais para o trabalho, o que foi reforçado em 2022, quando os sujeitos constituintes tripartites na Organização Internacional do Trabalho (OIT) elevaram o direito a um ambiente de trabalho saudável e seguro a um princípio fundamental e direito nas relações de trabalho.

Novas perspectivas foram atribuídas ao tema pela OIT, que, em seu centenário, aprovou Convenção nº 190 e Recomendação nº 206 para a eliminação da violência e do assédio no mundo do trabalho, alargando os limites tradicionais de abordagem normativa e das referências doutrinárias tradicionais sobre o tema, especialmente quanto às vulnerabilidades e opressões outras, tais como a questão de gênero.

A norma internacional, independentemente do status jurídico e das condições nacionais de reconhecimento do emprego e de proteções especiais, busca ampliar o raio de proteção contra a violência e o assédio para o mundo do trabalho. Desde a abrangência subjetiva tutelada, não limitada ao emprego e à formalidade, sua aplicação a todos os setores e atividades econômicas, incluindo atividades urbanas e rurais, trabalhadores a serviço do Estado, abarca todos os níveis hierárquicos e formas jurídicas, de estagiários a estratos gerenciais. A Convenção nº 190 da OIT é disruptiva quanto ao aspecto temporal tradicionalmente reconhecido para o tratamento do assédio e permite, em uma abordagem integrada à violência, reconhecer os efeitos deletérios de práticas e comportamentos inaceitáveis


independentemente de aspectos de permanência, duração e repetição, podendo se caracterizar por evento único e isolado.

A violência doméstica, antes tida como um problema de ordem privada, é considerada como fator ensejador de impactos indesejáveis nas relações de trabalho, sendo causa de afastamentos laborativos e fator que afeta negativamente a produtividade das empresas.

Nesse sentido rememore-se que as medidas de enfrentamento da pandemia de COVID-19, especialmente o isolamento social, ampliaram os riscos para violência, notadamente a doméstica, com piora das condições para denúncias, conforme alertas da Organização Mundial da Saúde.

Ainda no contexto da agenda internacional, a OIT tem voltado a atenção à matéria. A Convenção nº 190 é inovadora sob outras perspectivas, inclusive ao codificar a violência e o assédio como uma questão de inequidade de gênero, e que se qualifica não pela tipificação de comportamentos e práticas, mas pelos resultados ou como causa eficiente ou potencial de danos físicos, psicológicos, patrimoniais e sexuais, incluindo a violência baseada no gênero (ou sua dissidência). É inovadora também porque relaciona a violência ao mundo do trabalho, não apenas aos espaços físicos de empresas, incluindo trajetos e espaços nos quais o trabalho deva ser desenvolvido, inclusive o ambiente doméstico e o espaço virtual, reconhecendo a larga utilização das tecnologias e possibilidade de violência.

Juntamente com outras instituições (nomeadamente Lloyd’s Register Foundation e Gallup), a OIT apresentou recente levantamento global sobre as experiências das pessoas com violência e assédio no trabalho, registrado na Pesquisa de Risco Mundial da Lloyd's Register Foundation de 20211. Os resultados desse primeiro esforço são reveladores.

De acordo com o levantamento, quase uma em cada dez pessoas empregadas (8,5%) relatou ter sido vítima de violência física e assédio no trabalho


1 INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. LLOYD’S REGISTER FOUNDATION. Experiences of violence

and harassment at work: A global first survey. Geneva: ILO, 2022. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_863095.pdf. Acesso em: 15 dez. 2022.


em sua vida profissional. Violência e assédio psicológico foram as formas mais comuns de violência e assédio relatadas por homens e mulheres, com quase uma em cada cinco (17,9 por cento ou 583 milhões) pessoas empregadas vivenciando isso em sua vida profissional. Uma em quinze (6,3 por cento ou 205 milhões) pessoas empregadas sofreu violência sexual e assédio no trabalho. As mulheres foram particularmente expostas à violência sexual e ao assédio no trabalho. Os dados sobre violência e assédio sexual demonstram, de longe, a maior diferença de gênero (8,2 por cento das mulheres em comparação com 5,0 por cento dos homens) entre as três formas de violência e assédio.

Os recentes dados revelados pela Pesquisa de Risco Mundial da Lloyd's Register Foundation de 2021 apontam para a gravidade e atualidade da questão. Mas estes devem ser também cotejados com a maior extensão das práticas de violência, ao se assumir, por exemplo, a incidência de subnotificação, considerando as práticas de assédio e de retaliação das vítimas; os aportes conceituais e as abrangências da violência como estrutural, simbólica e sistêmica; e o próprio fato de a violência poder ser compreendida como constitutiva das relações de trabalho no sistema capitalista.

A pesquisa global e a Convenção nº 190 integram um esforço mais amplo de concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Esses objetivos incluem a criação de um mundo de trabalho baseado na equidade, sustentabilidade e respeito aos direitos humanos.

A barbárie, como notou Walter Benjamin, é aspecto indissociável do capitalismo de nosso tempo.

Categoria elementar para interpelar o passado e o presente das relações de trabalho, a violência constitui o eixo central do dossiê que agora vem a público. Ao propormos um espaço que reúne contribuições intelectuais sobre o tema nas relações de trabalho, esperamos que a compreensão de processos sociais e jurídicos de arranjo, combate e institucionalização de ataques praticados especialmente em relação à classe trabalhadora sejam confrontados com


perspectivas críticas e teóricas levantadas pelas autoras e pelos autores que participam do dossiê.

Tendo por objeto as plataformas digitais de transporte de pessoas e mercadorias a partir do prisma dos trabalhadores negros, Eneida Maria dos Santos, mestra em Direito pela UFRJ, e Rodrigo de Lacerda Carelli, doutor em Ciências Humanas pelo IESP/UERJ e professor da UFRJ, resgataram dados empíricos que assinalam a disparidade de oportunidade, tratamento e rendimento no mercado de trabalho entre negros e brancos nas modalidades de trabalho por plataformas digitais. O estudo defende o Direito do Trabalho como instrumental adequado para lidar com a violência do racismo estrutural encaminhado pelos trabalhos em plataformas do mundo atual.

Lydia Guevara Ramírez, professora da Universidad de la Habana, propõe políticas públicas e estratégias que contribuam para garantir os princípios consagrados na Constituição da República de Cuba e que também se baseiem em normas e convenções internacionais, especialmente a mais recente Convenção nº 190 e na Recomendação 206, ambas da OIT, bem como no Programa Nacional contra o Racismo e a Discriminação Racial (novembro de 2019), no Programa Nacional de Atenção à Mulher (março de 2021) e na Estratégia Integral para a prevenção e atendimento da violência de gênero e violência no ambiente familiar para 2021-2030, todos adotados em Cuba e publicados no Diário Oficial da República.

Pautando a dimensão de gênero como categoria analítica das normas jurídicas e o feminismo jurídico, Marcela Ragge, mestre em Direito pela UFMG, e Viviane Araújo, mestre em Comunicação Social pela Universidade do Porto (Portugal), desenvolvem problematização à ficção normativa que leva em consideração um trabalhador padrão, homem, branco e heterossexual. As autoras debatem a necessidade de que julgamentos levem em consideração marcadores interseccionais, o escape à consideração do gênero como categoria não problematizada e a categoria mulher representativa de todas as mulheres.

As diversas violências estruturantes do capitalismo digital e o trabalho subordinado por algoritmo são abordados por Marcia da Cruz Girardi, da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS), Faculdade de Educação Santa Terezinha (FEST) e


Unidade de Ensino Superior do Sul do Maranhão (UNISULMA), e Anderson Jordan Alves Abreu, do Instituto de Ensino Superior do Sul do Maranhão (IESe MA). As condições do trabalho em plataformas tecnológicas, a subordinação por algoritmos e paradoxo da autodeterminação subordinada ao capital tecnológico de dados e de vigilância, as condições econômicas impositivas de jornadas extenuantes, as diversas violências patrimoniais decorrentes da ausência de direitos trabalhistas, a informalidade e os dilemas sobre informação e governança são apontados como fatores caracterizadores das figuras análogas à escravidão, em dinâmica com o capitalismo 4.0.

Encerrando essa seção especial, Aldacy Rachid Coutinho, pesquisadora e Professora da UNIVEL, da Universidad de San Carlos de Guatemala e da Faculdade Damas, em “Violência e trabalho: apontamentos jurídicos para a efetividade de uma ética civilizatória”, convida-nos a pensar o poder como fenômeno que atravessa a relação de emprego e as violências como padrões de poder ou pressão inaceitáveis e que deveriam definir-se não pelos seus efeitos, senão como a externalização por meio da ação ou ameaça violenta e o proceder com alguma forma de agressão geradora de uma reação danosa ou que tenha a potencialidade ou risco de ocorrer. Aponta na normatividade da OIT e em outros marcos jurídicos sobre outras expressões da violência, tais como o assédio e a discriminação, uma plataforma apta a implementar uma ética civilizatória, por medidas repressoras e preventivas das mais diversas expressões da violência nas relações de trabalho.

À exceção do texto de Aldacy Rachid Coutinho, que atendeu a convite dos organizadores do dossiê Trabalho e Violências, todos os demais escritos publicados nesta seção especial, apresentados em atendimento à chamada pública de trabalhos, foram submetidos a avaliação às cegas de ao menos dois pareceristas, pesquisadores de diversas universidades do país e do exterior, aos quais manifestamos nossos sinceros agradecimentos. A avaliação realizada permitiu que chegássemos a um elevado grau de qualidade.

Em um momento de ataque às atividades científicas, agradecemos às/aos autoras/es por acreditarem na proposta e submeterem as suas produções para publicação, aos avaliadores pela comprometida dedicação e aos editores e leitores.

Desejamos a todas e todos uma excelente leitura.


REFERÊNCIAS


INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. LLOYD’S REGISTER FOUNDATION.

Experiences of violence and harassment at work: A global first survey. Geneva: ILO, 2022. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_863095.pdf. Acesso em: 15 dez. 2022.


Daniela Muradas

Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integra a Direção executiva da Associação Latinoamericana de Advogados Trabalhistas (ALAL). Em 2011, foi recebida na Università degli Studi di Roma Tor Vergata como professora visitante. Atualmente orienta doutorado em regime de cotutela com a Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0010322004110521. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5617-2958. E-mail: danielamuradas@gmail.com


Maria Jose Romero Rodenas

Professora e Pesquisadora da Faculdade de Relações Trabalhistas e Desenvolvimento de Recursos Humanos, vinculada ao Departamento de Direito do Trabalho e Trabalho Social da Universidade de Castilla-La Mancha (Espanha). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9814-2178. E-mail: MariaJose.Romero@uclm.es


Hugo Barretto Ghione

Professor da Universidad de la República (Uruguai). Secretário Editorial da Revista Derecho Laboral (Uruguai) e da Revista Derecho Social Latinoamérica. Professor associado do Centro Europeu e Latino-Americano de Diálogo Social. Membro da Academia Ibero-Americana de Direito do Trabalho e Previdência Social. ORCID: https://orcid.org/000-002-1925-8322. E-mail: hugobarrettoghione@gmail.com