O sentido social e os desafios da função
pública no Brasil e na França
The social sense and challenges of public function in Brazil and France
El sentido social y desafíos de la función pública en Brasil y Francia
Selma Venco¹
Gérard Aschieri²
Allan Kenji Seki³
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar a constituição e o desenvolvimento da função
pública em dois países com trajetórias históricas e contextos social, político e econômico
díspares: Brasil e França. Toma-se como hipótese que os processos de descaracterização e
mesmo o ocaso - da função pública atingem, ainda que de maneiras diferenciadas, ambos os
países. A pesquisa documental abarcou os marcos legais concernentes à edificação da função
pública na França e no Brasil, com vistas a compreender os direitos constituídos ao longo da
história ao funcionalismo público, cujo trabalho volta-se ao interesse geral da população, é
dotado de autonomia e, porta, assim, responsabilidade social. O tema adquire especial
relevância, em virtude de estar em curso no Brasil o debate acerca da Reforma Administrativa,
a qual está igualmente pautada na França. Constata-se que mesmo a França com forte adesão
ao Estado do Bem-Estar-Social vem gradativamente adotando a Nova Gestão Pública e com
tentativas de alterar o estatuto do funcionalismo público. No Brasil, por sua vez, desde o fim da
ditadura empresarial-militar adotam-se políticas neoliberais, com nítido aprofundamento da
cassação de direitos desde o golpe de 2016. Indica-se, ainda que com as devidas proporções,
os dois países analisados convergem na adoção de medidas de caráter ultraliberal, com vistas a
padronizar políticas de contratação e salariais para os setores público e privado.
PALAVRAS-CHAVE: Função pública brasileira; Função pública francesa; Funcionalismo Público.
ABSTRACT
This article analyzes the establishment and development of the civil service in two countries
with distinct historical trajectories and diverse social, political, and economic contexts: Brazil
and France. It is hypothesized that the processes of decharacterization - and even the decline -
of the civil service affect both countries, although in different ways. The documental research
covered the legal frameworks concerning the construction of the civil service in France and
Brazil, to understand the rights that have been constituted throughout the history of the civil
service, whose work is oriented to the general interest of the population, is characterized by
autonomy and, therefore, carries social responsibilities. The theme acquires special relevance,
due to the ongoing debate in Brazil about the Administrative Reform, which is also in progress
in France. It can be seen that even France, with its strong adherence to the Welfare State, is
gradually adopting the New Public Management and is attempting to change the civil service
statute. In Brazil, in contrast, since the end of the business-military dictatorship, neoliberal
policies have been adopted, with a clear increase in the erosion of social rights since the coup
of 2016. It is indicated, although with the appropriate proportions, that the two countries
analyzed converge in the adoption of measures of an ultraliberal nature, to standardize hiring
and wage policies for the public and private sectors.
KEYWORDS: Brazilian civil service; French civil service; Civil service.
RESUMEN
Este artículo pretende analizar la constitución y el desarrollo de la función pública en dos países
con trayectorias históricas y contextos sociales, políticos y económicos distintos: Brasil y
Francia. Se postula la hipótesis de que los procesos de descaracterización - e incluso de
desaparición- de la función pública afectan, aunque de manera diferente, a ambos países. La
investigación documental abarcó los marcos jurídicos relativos a la construcción de la función
pública en Francia y Brasil, con el fin de comprender los derechos constituidos a lo largo de la
historia a la función pública, cuyo trabajo se centra en el interés general de la población, está
dotado de autonomía y, por tanto, comporta una responsabilidad social. El tema adquiere
especial relevancia, debido al debate en curso en Brasil sobre la Reforma Administrativa, que
2
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también se pauta en Francia. Se observa que incluso Francia, con una fuerte adhesión al Estado
del Bienestar, ha incorporado paulatinamente la Nueva Gestión Pública e intenta cambiar el
estatuto de la función pública. En Brasil, a su vez, desde el fin de la dictadura empresarial-
militar, se han adoptado políticas neoliberales, con una clara profundización de la eliminación
de derechos desde el golpe de 2016. Los dos países analizados convergen en la adopción de
medidas ultraliberales, con el fin de homogeneizar las políticas de contratación y de salarios
para los sectores público y privado.
PALABRAS-CLAVE: Administración pública brasileña; Administración pública francesa;
Administración pública.
INTRODUÇÃO
O presente artigo objetiva analisar a constituição e o desenvolvimento da função
pública em dois países com trajetórias históricas e contextos social, político e econômico
díspares: Brasil e França. Trata-se de um recorte teórico inscrito em pesquisa
1
mais ampla
que examina o trabalho precário no setor público, especificamente o de professores e
professores na educação básica nos dois países. Tal eleição para analisar a função pública
remete à específica importância da experiência francesa, tanto por Rousseau
2
ser
considerado o primeiro a cunhar o termo serviço público, no sentido de asseverar o
atendimento à população, e com conseguintes obras, a exemplo de Jezè
3
e Pors e Aschieri
4
,
essa última inspiradora da presente análise. Considera-se inconteste a relevância do
ordenamento jurídico construído naquele país, reconhecidamente, no Brasil, nos escritos de
Bandeira de Mello
5
e Di Pietro
6
, cujas formulações voltam-se à legitimidade da função
pública assegurada e provida por concurso público e sujeito à flexibilização mediante
excepcionalidade natural ou eventos esportivos, por exemplo, efêmeros.
Além disso, ponderou-se ser relevante seletar os dois países pelo fato de, apesar de
ambos situarem-se em posições distintas no mercado mundial França, caracterizadamente
de capitalismo central, e Brasil, de capitalismo-dependente pois ambos possuem
similitudes quanto às reformas implementadas na base de seu funcionalismo público, como
1
A pesquisa ora apresentada é financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP), intitulada A política educacional no Brasil e na França: um estudo sobre as relações de trabalho no
território(Processo nº. 2019/01552-3).
2
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social ou principes du droit politique. Paris: Association des Bibliophiles
Universels, 1999.
3
JÈZE, Gaston. Les príncipes generaux du droit administratif. Paris: Giard & Briere, 1914.
4
PORS, Anicet; ASCHIERI, Gérard. La fonction publique du XXIème. Ivry-sur-Seine: Les éditions de l’atelier,
2015.
5
MELLO, Celso Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
6
DI PIETRO, M. S. Z. Direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
3
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se percebe, entre outras, por suas adesões à Nova Gestão Pública. Assim, partindo de uma
breve distinção do processo de constituição da função pública na França e no Brasil, toma-se
como hipótese que os processos de erosão da função pública atingem, ainda que de
maneiras distintas, países com tradições e formações sociais dessemelhantes e apontam
para profundas mudanças na regulação que desafiam, desde o presente, a dinâmica de
reprodução dos meios de vida dos trabalhadores.
O trabalho porta particular relevo na atual quadra da história, na qual estão em curso
significativas reformas na administração pública de ambos os países com especial destaque
para a PEC 32 (Proposta de Emenda à Constituição da Reforma Administrativa), em
tramitação no Brasil e em inúmeros atos por parte do governo francês, a exemplo dos
contratos intermitentes nas universidades
7
e nos espetáculos
8
. Resgatar o sentido histórico
da fuão pública e seus princípios basilares é parte necessária e precípua do avanço nos
debates no campo de análise dos direitos e políticas sociais.
A concepção de função pública é construída na França a partir do século XII, em
quatro etapas, quais sejam: a primeira, ao final da Idade Média ao indicar que não se é
soberano por graça divina, mas em razão de sua autoridade
9
: o poder, portanto, tem raízes
nas relações de forças concretas e materiais que se constituem em processos históricos. O
estabelecimento de um Conselho de Estado, na França, opera uma distinção significativa
entre o público e o privado e surgem algumas ações nas comunas, as quais passam a deter o
monopólio de certas atividades como ensino, segurança, saúde constituídos em escritórios
conferidos pelo rei. Na segunda etapa, ao final da monarquia absoluta no século XVIII, a
França vivencia importante mudança sob o reino de Louis XIV, que passa da assertiva o rei
sou eu, lema do auge do absolutismo e da unicidade entre o poder político e econômico do
7
SOULIÉ, Charles. Précarité dans l'enseignement supérieur. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 1996,
nº 115.
8
COULANGEON P. L‘expérience de la précarité dans les professions artistiques : le cas des musiciens
interprètes. Sociologie de l’art, opus 5, nouvelle série Le travail artistique. Paris: L‘Harmattan, 2005; MENGER
P.Retrato do artista enquanto trabalhador metamorfoses do capitalismo. Lisboa: Roma Editora, 2005;
MENGER P. Les intermittents du spectacle sociologie d’une exception. Paris,: EHESS, 2005; SEGNINI, Liliana.
Acordes Dissonantes: assalariamento e relações de nero em orquestras. In: Antunes, Ricardo. Riqueza e
miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 321 a 336.
9
PORS, Anicet; ASCHIERI, Gérard. La fonction publique du XXIème. Ivry-sur-Seine: Les éditions de l’atelier,
2015.
4
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soberano, para, em seu leito de morte, dizer: eu morro, mas o Estado viverá para sempre
10
.
É o Estado sendo desvinculado da figura do soberano, que se consagra com a Revolução
Francesa e estabelece os princípios de uma nova fase, a terceira, que ocorre à luz da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789
11
. Inicia-se nesse período o
delineamento do serviço público, tal como conhecido na atualidade, estabelecendo relações
de novo tipo entre as classes sociais que também terá rebatimentos significativos na forma
do Estado e do direito. E, por fim, a quarta mutação, no século XX, que poderia ser chamada
de a idade de ouro do serviço público, na qual ocorre a edificação de instituições à gestão
dos bens comuns
12
nesse momento, na França, se consolidou um quadro notável de força
de trabalho pública, que passou de 200 mil, no início do século XX, para 5,66 milhões, em
2019
13
.
No Brasil, segundo Negreiros
14
, o serviço público tem suas origens em 1808, com a
vinda da Família Real Portuguesa e seu estabelecimento no Rio de Janeiro (RJ), tendo em
vista que a instalação da coroa em terras brasileiras exigia a criação de uma estrutura
administrativa capaz de realizar o exercício do poder real simultaneamente sobre a
metrópole em guerra e as colônias além-mar. A concepção da administração pública na
colônia, contudo, limitava-se àquilo que era requerido para a manutenção da própria relação
colonial, não sendo permitido por Portugal o desenvolvimento de um Estado autônomo. É
somente com a Proclamação da República, em 1889, que a função blica será
impulsionada, ainda que mediante à ausência de uma legislação própria ou denominões
que estabeleçam uma distinção substantiva entre os trabalhadores do serviço público e os
demais.
10
No original: L'État, c'est moi; Je meurs, mais l'État demeurera toujours.
11
FRANÇA. ASSEMBLÉE NATIONALE. Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen de 1789. 1789.
Disponível em: https://bit.ly/3vLOwEU. Acesso em: 27 out. 2021.
12
PORS, Anicet; ASCHIERI, Gérard. La fonction publique du XXIème. Ivry-sur-Seine: Les éditions de l’atelier,
2015, p. 37.
13
FRANÇA. Vie Publique, 2021. Disponível em: https://bit.ly/3mtx3xW. Acesso em: 27 out. 2021.
14
NEGREIROS, Regina Coeli Araújo. Éthos, educação e serviço público: uma tríade basilar na construção de
uma sociedade saudável. Curitiba: Appris, 2019.
5
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Somente em 1939, com a publicação do Decreto 1.713, de 28 de outubro de
1939
15
, o Brasil disporá do primeiro Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, que
prevê o funcionário público como aquele legalmente investido de cargo público e, no art. 13,
inciso VIII: ter-se habilitado previamente em concurso, salvo quando se tratar de cargos
para os quais haja essa exigência. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943,
regulamentou uma série de direitos básicos à classe trabalhadora, mas excluía
peremptoriamente o funcionalismo público. Ademais, apenas dois anos após sua publicação,
passou a permitir a contratação dos agentes públicos via CLT
16
. A consequência imediata
dessa medida foi que passou a existir, na prática, dois regimes na administração pública: um
estatutário e outro regido pela CLT. A Constituição Federal de 1988
17
resultado de um
processo de diferenciação histórico específico, no contexto de repactuação social pós-
regime empresarial-militar instaurado com o golpe de 1964 , em seu art. 39, altera tal
situação e determina a existência de um regime único de contratação de servidores, que
ademais deveriam ser escolhidos mediante concurso público.
Sociólogo por formação, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, antes do início
de seu mandato na Presidência da República (1995-2003) recomendou que esquecessem
seus escritos acadêmico afinal o mundo mudou
18
e a realidade agora era outra
19
. Em seu
empenho para implementar a Nova Gestão Pública (NGP), aprovou uma série de
mudanças na Constituição Federal e, com a Lei n.º 9962 de 22 de fevereiro de 2000,
procurou reestabelecer a dualidade na contratação da força de trabalho pública
20
.
15
BRASIL. Câmara dos Deputados. Decreto-lei nº 1.713, de 28 de outubro de 1939. Dispõe sobre o Estatuto dos
Funcionários Públicos Civis da União. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União, 1939. Disponível em:
https://bit.ly/3nxY8iN. Acesso em: 21 out. 2021.
16
BRASIL. Decreto-lei 8.079, de 11 de outubro de 1945. Altera a redação do art. da Consolidação das Leis
do Trabalho aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União,
1945. Disponível em: https://bit.ly/310g6ml. Acesso em: 21 out. 2021.
17
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Diário Oficial da União, 1988.
Disponível em: http://bit.ly/2KfnYq9. Acesso em: 21 out. 2021.
18
FOLHA DE S. PAULO. ‘Esqueçam o que escrevi’ é polêmica até hoje. 1996. Disponível em:
https://bit.ly/3Cll8I9. Acesso em: 21 out. 2021.
19
Esse senso de transformismo e realismo é a tônica dos discursos que buscam legitimar as reformas do Estado
contra a classe trabalhadora.
20
Apenas sete anos após, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a reforma, retomando-se, assim, o caráter
único de contratação. A medida, contudo, é relativa, visto que uma série de transformações no âmbito do
Estado, especialmente no bojo da Reforma Administrativa, fizeram com que parcelas crescentes da força de
trabalho estatal esteja efetivamente legada às organizações sociais, fundações e empresas públicas.
6
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No Brasil, apesar da consolidação da função pública na Constituição Federal de 1988,
desde então, esta tem sido sistematicamente atacada em seus sentidos social e histórico
conforme vem sendo apontada por estudos como os de Assis e Figueiredo
21
e Tormin,
Linhares
22
, entre outros e são estratégica e diligentemente arquitetadas no âmbito do
Estado.
É, portanto, neste contexto que se apoia o debate sobre a função pública, qual seja:
como aquela portadora e representativa do interesse geral da população e,
simultaneamente, erige a concepção política do Estado, aspectos desenvolvidos a seguir.
1. A função pública na França: a emergência do funcionalismo cidadão
A ideia de um fundamento autônomo para a função pública está estreitamente
vinculada à concepção de serviço público que foi construída na França articuladamente ao
pacto republicano e aos valores relativos aos direitos sociais. Trata-se da projeção das
necessidades gerais da sociedade, distintas dos interesses particulares e da concorrência
capitalista e toma por base a afirmação de princípios como os de liberdade, laicidade de
igualdade, ainda que formais. Sua história é, assim, marcada pela constituição de uma
administração investida de um domínio comum, que paulatinamente se distingue do
emanado pelo poder monárquico. Pode-se remontar à Idade Média, quando o soberano -
até então assim considerado pela graça de Deus - adquire sua autoridade política pessoal e
inicia, destarte, uma secularização de poder que, na França, conhece uma nova etapa sob
Luís XIV. As necessidades de uma administração fazem com que esse, para afirmar seu
poder, desenvolva um aparelho de Estado bastante considerável. E, progressivamente, o
aparelho de Estado se separa da pessoa do rei enquanto esse é relativizado: Jean-Jacques
Rousseau, no livro O contrato social
23
, atribui a soberania ao povo e não uma pessoa no
exercício do poder político e estabelece, desse modo, uma bipolarização entre o aparelho de
21
ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz. FIGUEIREDO, Eduardo Henrique. Constituição Júlia: uma carta-mulher de
trinta. Direito, Estado e Sociedade, n. XX 2020. Disponível em https://bit.ly/3lFu0Sv. Acesso em 03.dez.2021.
22
TORMIN, Mariana. LINHARES, Emanuel. Pandemia e Erosão da Democracia Constitucional: uma Análise dos
Ataques à Transparência no Brasil. Revista De Direito Público. Brasília, vol.17. nº96, 93-122, nov-dez/2020.
23
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social ou principes du droit politique. Paris: Association des
Bibliophiles Universels, 1999.
7
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Estado e a sociedade civil que, uma vez constituída em sua múltipla configuração, age para
ocupar o poder de Estado e se assumir como soberano.
Todavia, a compleição de um aparelho de Estado, com agentes cuja missão particular
é apoiar o interesse geral de forma autônoma ou independente dos interesses do príncipe,
ou dos governos representativos, deve ser analisada sopesando-se a conjuntura concreta do
serviço público ao longo de sua história. Com base em Pors e Aschieri, constata-se que esses
trabalhadores, sob a monarquia absolutista, possuíam responsabilidades transformadas
em venais, à imagem dos atuais tabeliões e asseguravam o funcionamento administrativo
24
.
A Revolução Francesa vislumbrou suprimir tais privilégios associados a funções
administrativas e firmou os princípios para acesso aos encargos e seu exercício. Contudo, a
função pública permaneceu, ainda, regida por uma concepção autoritária e hierárquica até a
Segunda Guerra Mundial.
Ao longo desse período, os governos os mais conservadores tentaram impor um
estatuto que privilegiasse a obediência ao poder hierárquico, o que levou, em primeiro
lugar, a uma condenação da noção de estatuto pelas associações dos funcionários públicos,
pois para os sindicatos desse segmento era uma tentativa de qualificá-lo como uma camisa
de força. Foi pela via jurisprudencial e um pouco pela lei, que o funcionalismo foi
progressivamente obtendo garantias, mas de forma retardatária em relação aos
trabalhadores do setor privado. As leis sobre o direito de greve, em 1864, e o direito sindical,
em 1884, foram acordadas aos assalariados das empresas privadas, excluindo o
funcionalismo público.
O aporte ao estatuto de 1946 foi reverter essa lógica: opor-se ao estatuto camisa de
força - dito jurisprudencial - e a uma passagem da concepção de funcionário sujeito à de
funcionário cidadão, tal foi a inteligência e a coragem do Conselho Nacional de Resistência
e da Libertação, que não previram nenhuma particularidade ao setor público, mas
destinaram ao conjunto dos trabalhadores uma base de direitos e liberdades, conforme
previsto no preâmbulo da Constituição votada no mesmo ano:
Cada um tem o dever de trabalhar e o direito de obter um emprego.
Ninguém pode ser prejudicado em seu trabalho, em razão de suas origens,
24
PORS, Anicet; ASCHIERI, Gérard. La fonction publique du XXIème. Ivry-sur-Seine: Les éditions de l’atelier,
2015.
8
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de suas opiniões ou de suas crenças. Todo homem pode defender seus
direitos e seus interesses pela ão sindical e aderir ao sindicato de usa
escolha. O direito de greve se exerce no quadro das leis que a
regulamentam. Todo trabalhador participa, por intermédio de seus
representantes, da determinação coletiva das condições de trabalho, assim
como da gestão da empresa.
25
A decisão tomada foi constituir uma função pública baseada na lei e não no contrato,
com a ideia de que os funcionários estão a serviço do interesse geral e, por essa razão, sua
independência deve ser assegurada face às pressões políticas, religiosas ou econômicas,
mesmo em relação à arbitrariedade administrativa e pode ser feita pela lei, expressão da
vontade geral, enquanto no contrato prevalece o acordo entre as duas partes que
estabelecem as regras.
2. Uma construção original e perene
Esta orientação, a de uma função pública baseada na lei e não no contrato,
associando democracia e eficácia ao serviço de interesse geral, que foi confirmada e
enriquecida pela construção estatutária adotada em 1983, é ainda vigente. O debate,
invariavelmente vívido, resultou em uma série de escolhas decisivas.
A primeira escolha foi a do funcionário cidadão, do funcionário responsável, que não
obedece a ordens, mas cumpre as instruções de seu superior hierárquico, enquanto exerce
sua própria responsabilidade. Ele possui direitos, notadamente: o sindical, o de negociar, o
de greve (exceto em casos particulares como a polícia ou os carcereiros), o de ser consultado
por seus representantes eleitos acerca das decisões concernentes à carreira e à organização
do trabalho, a liberdade de expressão, entre outros. Ao mesmo tempo, a função pública
guarda obrigações específicas, as quais o funcionário deve responder como a neutralidade, a
continuidade dos serviços públicos, a adaptabilidade e a igualdade de tratamento. Aspectos
esses envoltos em certos deveres e limites, cuja articulação de direitos e deveres se traduz
por meio de uma escolha: evidenciar, no estatuto, três princípios fundamentais.
25
FRANÇA. CONSEIL CONSTITUTIONEL. Préambule de la Constitution du 27 octobre 1946. 1946.
Disponível em: https://bit.ly/3BfUxuJ. Acesso em: 16 mar. 2021, p. 2.
9
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O primeiro deles, é o princípio da igualdade que tem como referência o art. da
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão
26
:
A Lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de
concorrer, pessoalmente ou através dos seus representantes, para a sua
formação. Ela deve ser a mesma para todos, quer se destine a proteger
quer a punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos, são igualmente
admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a
sua capacidade, e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e
dos seus talentos.
27
É aqui que se procede o recrutamento por concurso com regras capazes de garantir a
igualdade - destacadamente a publicidade das vagas, independência dos júris, provas
escritas anônimas e assim por diante.
O segundo princípio, o da independência do funcionário, se articula à noção de
carreira, pois está, antes de tudo, a serviço do interesse geral e o estatuto lhe garante essa
condição graças, destacadamente, à separação do cargo e da função
28
, pois ele tem direito a
uma carreira, qualquer que seja seu emprego e quem quer que seja seu superior hierárquico
ou a administração do qual ele depende. A contrapartida é que o funcionário público deve
aceitar qualquer posto correspondente ao seu cargo, mesmo se esse não corresponder aos
seus anseios ou restrições pessoais, a exemplo do local de residência. Esta é uma garantia
fundamental também ao funcionalismo, pois é assim protegido das pressões, como para o
usuário que tem assegurada as condições de igualdade de tratamento e da perenidade da
ação pública.
Por fim, o princípio da responsabilidade cuja referência é o art.15 da Declaração dos
direitos do homem e do cidadão: A sociedade tem o direito de pedir contas a todo o agente
público pela sua administração
29
. Uma responsabilidade que se exerce inserida na
neutralidade face às opiniões e às crenças dos usuários, que devem ser tratados sem
discriminação, ou seja, em conformidade com o princípio da laicidade.
26
FRANÇA. ASSEMBLÉE NATIONALE. Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen de 1789. 1789.
Disponível em: https://bit.ly/3vLOwEU. Acesso em: 27 out. 2021.
27
No original: Tous les Citoyens étant égaux à ses yeux sont également admissibles à toutes dignités, places et
emplois publics, selon leur capacité, et sans autre distinction que celle de leurs vertus et de leurs talents.
28
Na França, a grade vincula-se às qualificações profissionais do trabalhador, enquanto o emprego refere-se ao
contrato de trabalho.
29
No original: La Société a le droit de demander compte à tout Agent public de son administration.
10
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A segunda escolha, por sua vez, foi articular a unidade à diversidade: o estatuto de
1946
30
não concerne exclusivamente ao funcionalismo público; todavia, as leis de
descentralização votadas em 1982
31
emergiram questões referentes aos agentes das
autoridades territoriais que receberam novas responsabilidades, até então exercidas pelo
Estado. A resposta foi indicar a criação de um dispositivo capaz de conciliar a unidade da
função pública, de forma a considerar as necessidades diferenciadas vinculadas às
especificidades dos diversos locais de trabalho. Isso conduziu a uma certa arquitetura da
função pública em três vias com: um tulo definindo os direitos e as obrigações comuns a
todos; um título dois, contendo as disposições específicas ao funcionalismo público; um
terceiro contemplando a territorialidade; e, por fim um título destinado aos servidores da
saúde pública. Após longos debates, considerou-se a impossibilidade de convivência entre
dois sistemas de função blica na França, um de carreira e outro de emprego, mas sim um
único sistema de carreira para todos.
Apreende-se a existência e a forma específica e o conteúdo dos estatutos que regem
a função pública na França e no Brasil são fortemente correlacionados aos princípios
fundadores de uma concepção iluminista de democracia e aos denominados interesse geral
das sociedades, mas também aos bens comuns.
É relevante acrescentar que esse estatuto, unificador das regras, rege o conjunto
dos funcionários públicos e lhe permite evoluir, comparar e assegurar passagens entre os
diversos setores. Nesse sentido se constitui, de fato, uma função pública, ou seja, um
coletivo cujos membros são capazes de trabalhar juntos e cooperar entre si, com vistas a
responder às necessidades da sociedade. O estatuto permitiu, também, construir valores
compartilhados como a integridade ou o senso do serviço público, um dos propulsores da
ação para grande parte dos servidores.
Foi sobre essas bases que os agentes públicos construíram - conjuntamente com
suas respectivas organizações sindicais - as modalidades de gestão e de práticas não
30
FRANÇA. CONSEIL CONSTITUTIONEL. Préambule de la Constitution du 27 octobre 1946. 1946.
Disponível em: https://bit.ly/3BfUxuJ. Acesso em: 16 mar. 2021.
31
Sobre isso ver Lois Defferre, que implanta uma nova associação de poderes entre o Estado, as regiões, os
departamentos e as comunas. Entre 1982 e 1986, instaurou-se um conjunto de leis e decretos, conhecidos
como ato de descentralização (FRANÇA. Quest-ce que lacte I de la décentralisation?, Vie Publique, 2020.
Disponível em: https://bit.ly/3mctCuX. Acesso em: 27 out. 2021).
11
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previstas expressamente pela lei, mas que correspondem ao seu espírito e a suas
finalidades, e permitem a transparência e a comparabilidade entre as situações e, portanto,
a solidariedade entre os agentes, bem como a igualdade de tratamento.
Tal construção se faz presente até hoje e, a despeito das reduções de postos de
trabalho ocorridos nos últimos anos, são ainda, conforme o Ministério da Função Pública,
cerca de 5,6 milhões de agentes em 2019
32
, o que representa 19,8% dos assalariados
franceses. O estatuto foi frequentemente modificado ao longo dos anos: 225 alterões
legislativas em 30 anos e se mostrou adaptável e lido. Podemos destacar, em particular o
fracasso da tentativa de Nicolas Sarkozy (2007-2012)
33
em colocar sob o mesmo plano a
seleção dos funcionários públicos e os contratos de direito privado, o que significaria minar
o princípio da função blica. A crise de 2008 interrompeu essa ofensiva, demonstrando
nitidamente o papel de amortecedor social dos serviços públicos e da função pública.
Mas, ao longo dos anos, foi desenvolvida uma lógica gerencialista que, simultaneamente,
afirmava a manutenção dos princípios do estatuto e os reduzia às simples performances
individuais e promovia a concorrência entre os agentes públicos à eficácia coletiva que
permite a existência de uma função pública fundada sobre o princípio da carreira.
O mandato de cinco anos de François Hollande (2012-2017) conferiu uma pausa:
não houve, ao longo desse período, ataques frontais ao estatuto, ainda que seja deplorável
a falta de coragem ou ausência de ambão e que decisões mais construtivas não tenham
sido realmente colocadas em prática.
Entretanto, está em curso atualmente uma nova ofensiva. O atual presidente,
Emmanuel Macron (2017-2022)
34
e seu governo retomaram o tema, sem, contudo, atingir
diretamente o conjunto da estrutura do estatuto, mas dizimando-o por meio de medidas e
práticas que, de fato, questionam seus princípios fundadores, de forma semelhante à
estratégia tentada por Nicolas Sarkozy. Tal estratagema demonstra a vontade de
modernizar a função pública, que evoca frequentemente as desigualdades entre o
32
FRANÇA. Ministère de la Transformation et de la Fonction Publique. Les chiffres-clés. Disponível em:
https://bit.ly/3m9m8cc. Acesso em: 03.dez.2021.
33
Anteriormente foi Ministro do Interior (2002-2004) e depois das Finanças (2004-2005), na presidência de
Jacques Chirac.
34
Ele igualmente ocupou, anteriormente, o cargo de Ministro da Economia (2014-2016) no governo François
Hollande.
12
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público e o privado. Mas tais medidas são, em parte, paralelas às impostas aos
trabalhadores do setor privado, tanto pelo governo anterior como pelo atual
destacadamente a Lei do Trabalho de 2016 e as portarias voltadas à reforma do código do
trabalho
35
, em 2017. De fato, elas visam introduzir na função pública as lógicas prevalentes
no setor privado e em ambos os casos fragilizar, ainda mais, a situação dos trabalhadores,
rompendo a hierarquia das normas e conferindo mais importância ao local (empresa do
setor privado, fomentando a concorrência no interior do serviço público), em detrimento
das regras comuns definidas no plano nacional.
São aqui resumidas estas medidas em torno de grandes eixos: o primeiro, concerne
ao desenvolvimento dos contratos em detrimento dos empregos estatutários; as
disposições permitiram um recrutamento de pessoal não efetivo, para enfrentar as
necessidades específicas e permitindo certas adaptações e, apesar de um enquadramento
pela lei, os gestores estão, com frequência, excedendo-se, devido à ausência de concursos
públicos: assim, há, na atualidade, cerca de 17% de trabalhadores não efetivos atuando no
setor público, percentual que alcança 25% no ensino superior e na pesquisa. Mas uma lei,
votada em agosto de 2019, avançou ainda mais: um de seus capítulos intitula-se expandir
o acesso aos contratos e introduz uma forma de contrato por missão, a exemplo do que é
feito no setor privado; o princípio contido no título é a possibilidade de estabelecer um
contrato distinto do por tempo determinado (CDD) existente, mas, agora, com duração
limitada segundo o tempo de execução da missão ou do projeto. Seus promotores
justificam que esse, diferentemente do CDD, não é um emprego precário, mas é, de fato,
um emprego cuja perenidade é particularmente frágil, pois se vincula a um elemento
exterior no qual o trabalhador tem parcialmente o controle e escapa das regras europeias
que preveem a todos os que ultrapassarem um CDD de seis anos possuírem o direito de ter
seu contrato transformado em contrato por tempo indeterminado.
O segundo eixo consiste em desenvolver o que chamamos de Nova Gestão blica e
dar mais margens de manobra aos níveis hierárquicos em termos de gestão das carreiras e
dos processo seletivos: nessa perspectiva, a lei visa enfraquecer as garantias coletivas do
funcionalismo blico e, destacadamente, reduzir o papel dos organismos consultivos, nos
35
Equivalente à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) no Brasil.
13
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quais os trabalhadores são representados por colegas eleitos - em particular as comissões
administrativas paritárias , com vistas a ter sua opinião defendida sobre a evolução das
regras estatutárias, sobre o funcionamento e a organização dos serviços públicos e sobre as
medidas individuais da carreira. Todavia, graças a essas instâncias que os trabalhadores
conquistaram no passado, foi possível construir tais modalidades e práticas que
asseveraram garantias suplementares, mencionadas anteriormente, e se opuseram ao
arbitrarismo. O objetivo, compreende-se, era deixar cada vez mais os agentes em uma
situação de dependência e fragilidade face a seu superior hierárquico e em concorrência
com seus colegas, a partir de uma ideia de que isso permitirá uma gestão mais eficaz e uma
redução de custos.
Mas, ao adotar tal política, ignorou-se a função social que os funcionários públicos
sempre demonstraram coletivamente e isso o afeta exclusivamente os direitos dos
trabalhadores em questão; ela vai ao encontro das necessidades do serviço público e
enfraquece a situação do conjunto dos trabalhadores.
A precariedade nas relações de trabalho jamais foi garantia de eficiência, sobretudo
no serviço público que deve, por princípio, enfrentar os desafios e as questões sociais cada
vez mais complexas e por essa razão necessitam de um funcionalismo estável, que possa
trabalhar e assegurar a perenidade da ação pública. Estabelecer uma dependência cada vez
mais forte da chefia imediata e uma concorrência entre colegas vai de encontro às
necessidades de igualdade de tratamento dos usuários e de um trabalho coletivo
indispensável nos serviços públicos modernos e eficazes.
A observância às necessidades da sociedade e aos obstáculos confrontados, a
inevitabilidade de coesão social, de luta contra as desigualdades, de educação e formação,
de proteção e de gestão dos bens comuns, desde o solo ou a biodiversidade até a cultura,
desafios do mundo digital ou da desregulamentação climática entre outros, apreende-se a
premência de formas de gestão coletivas, solidárias e de agentes públicos beneficiados por
um conjunto de direitos e de obrigações que articula o estatuto.
Enfim, é importante destacar que o estatuto dos funcionários na França é uma
referência social para o conjunto dos trabalhadores e ao questioná-lo, é também um ponto
de apoio que poderá se constituir em campo minado. Não se trata, pondera-se, de transpor
14
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o estatuto do funcionalismo ao conjunto dos trabalhadores, isso porque ele responde às
necessidades específicas da sociedade, mas sim trabalhar para uma convergência,
notadamente em termos de hierarquia das normas e de protão respeitando as
especificidades de cada setor, de maneira a permitir o mais uma uniformidade, mas sim
direitos análogos. A analogia é aqui compreendida no sentido da igualdade da relação. Para
recuperar uma frase de Anicet Le Pors
36
:
Sobre essas bases, homogêneas e diferenciadas, poderia, então, ser
organizada a convergência de políticas sociais e de ações reivindicativas
tendendo a melhorar o conjunto do estatuto geral do funcionalismo público
e do estatuto dos trabalhadores do setor privado
37
.
3. O sentido social da função pública no Brasil
O Brasil, após longos vinte e um anos de ditadura, elege Fernando Collor de Mello
(1990-1992) que, imbuído de valores neoliberais, veicula em seus planos e na mídia a ideia
de um Estado paquidérmico
38
, oneroso e inábil para enfrentar os novos desafios de uma
sociedade em mutação, com avanço da mundialização e fortes demandas de
competitividade entre as empresas.
A opinião pública foi sendo alimentada pelos princípios da Nova Gestão Pública
concretizada pelo governo FHC (1995-2002) que, pelas mãos do Ministro da Administração e
Reforma do Estado (MARE), Bresser-Pereira intelectual orgânico do capital, membro do
Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) e pesquisador da administração pública ,
construiu as bases legais para a flexibilização no setor público. Isso se deu tanto por guindar
o mercado como um ator coadjuvante essencial na execução das políticas públicas, quanto
por arquear as formas de contratação, antes feitas exclusivamente por seleção pública, salvo
36
Membro do Partido Comunista Francês (PCF), Senador (1977) e Ministro da Fuão Pública (1981-1984).
37
No original: Sur ces bases, à la fois homogènes et différenciées, pourrait alors être organisée la convergence
des politiques sociales tendant à l’amélioration conjointe du statut général des fonctionnaires, des statuts des
agents des entreprises publiques et du statut des travailleurs salariés du secteur privé (GUYOMAR, Mattias.
Entretien avec Anicet Le Pors, 2013. Disponível em https://bit.ly/3H6cP5x. Acesso em: 27 out. 2021, s/p.
38
Sobre isso ver: documentário de Silvio Tendler (2014) Privatizações: a distopia do capital. Cf. TENDLER,
Silvio, Privatizações: a distopia do Capital. Roteiro: Silvio Tendler. 2014. 1 (56 min.), son., color. Disponível em
https://bit.ly/3boeYLr. Acesso em: 28 out. 2021.
15
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exceções de caráter de urgência ou de catástrofe natural, conforme previstas na
Constituição Federal de 1988.
Ambos os governos buscaram edificar os marcos necessários para inovar conforme
concepção neoliberal na administração blica, via a inauguração do Estado Gerencial em
substituição ao Burocrático, cuja compreensão reside na flexibilização das organizações e na
implantação de um modelo contratual e competitivo de ação estatal, a partir do qual seria
possível ampliar a eficiência e a efetividade das políticas adotadas. Nesse cenário, o serviço
público vem sofrendo ataques de políticos conservadores, solicitando o fim da estabilidade
dos servidores que não apresentarem produtividade e desempenho, a exemplo dos Projeto
de Lei Complementar (PLP) 550/2018
39
, PLP 248/1998
40
e Projeto de Lei do Senado (PLS)
116/2017
41
, cuja defesa é o expressivo corte de custos e a noção de privilégios a uma parcela
de trabalhadores. Contudo, ofuscam e desconsideram o Estado como promotor da política
pública. Em 1908, Léon Duguit, jurista francês e fundador da Escola do Serviço Público
(Escola de Bordeaux), definiu o papel social do Estado viabilizado pelo serviço público:
Toda atividade cuja realização deve ser assegurada pelos governantes,
porque a realização dessa atividade é indispensável ao desenvolvimento da
interdependência social e que ela é de tal natureza que ela não pode ser
realizada completamente a não ser por intermédio da força governamental
(grifos nossos).
42
Para Castel a noção de “interdependência social” é fundamental, pois é a expressão
do vínculo que une os cidadãos, com vistas a evitar a dissociação social” e, para esse autor,
é o Estado o único responsável por disponibilizar os serviços de interesse geral da e para a
39
BRASIL. Câmara dos Deputados. PLP 550/2018. Altera o art. 41, § 1º, III, da Constituição Federal, para dispor
sobre a perda DA ESTABILIDADE do Servidor Público Estável por falta de desempenho e produtividade. 2018.
Disponível em: https://bit.ly/3vSP8IK. Acesso em: 27 out. 2021.
40
BRASIL. Câmara dos Deputados. PLP 248/1998. Disciplina a perda de cargo público por insuficiência de
desempenho do servidor público estável, e dá outras providências. 1998. Disponível em: https://bit.ly/2XVaA3j.
Acesso em: 27 out. 2021.
41
BRASIL. SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado 116, de 2017 (Complementar). Regulamenta o art.
41, § 1º, III, da Constituição Federal, para dispor sobre a perda do cargo blico por insuficiência de
desempenho do servidor blico estável. 2017. Disponível em: <https://bit.ly/3mnS8ts>, acesso em 27 out.
2021.
42
Tradução livre. DUGUIT, 1908 apud CASTEL, Robert. La montée des incertitudes. Travail, protections, statut
de l’individu. Paris: Éditions du Seuil, 2009, p. 203.
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população
43
. Congruente a tal perspectiva, ressaltam que o funcionalismo público,
assumindo esse papel na sociedade, tem atuado em momentos de crise como um
“amortecedor social, que impede a explosão aguda das desigualdades sociais
44
,
vislumbrando, assim, compor uma “sociedade de similares”
45
.
4. O funcionalismo público
A França contava, no início do século XX, com 200 mil funcionários públicos e, em
2013
46
, com 5,4 milhões, para uma população de 65.564.745 no mesmo período
47
. Enquanto
no jovem e continental Brasil havia 6,264 milhões de funcionários públicos, em 1995,
saltando vinte e um anos depois, em 2016, para 11,492 milhões, considerando as três
esferas públicas
48
.
Os meros aparentemente vultosos parecem revelar que ambos os países
empregam excessivamente e tornam o Estado oneroso. Todavia, dados de diversos países
sistematizados pela OCDE revelam estar tanto a França quanto o Brasil abaixo da média que
relaciona o percentual de servidores públicos ao total de trabalhadores em cada país: 21%
49
.
A Dinamarca e a Noruega lideram a comparação, tendo cada uma 35% de servidores
públicos do conjunto de empregados, enquanto a França, por sua vez, está distante dos
Estados com maior percentual e se aproxima da média dos 32 países pesquisados, atingindo
e mantendo 20% em dois anos pesquisados (2009, 2013). O Brasil atingia um percentual de
12% em 2009, ampliando para 15%, em 2013, ultrapassado por México, Chile, Japão,
Coia e Colômbia.
43
CASTEL, Robert. La montée des incertitudes. Travail, protections, statut de l’individu. Paris: Éditions du Seuil,
2009.
44
PORS, Anicet; ASCHIERI, Gérard. La fonction publique du XXIème. Ivry-sur-Seine: Les éditions de l’atelier,
2015.
45
CASTEL, Robert. L’Insécurité sociale. Qu’est -ce quêtre protégé ?, Paris, Seuil, 2003, p. 34.
46
FRANÇA. Ministère de la forme de lÉtat, de la Décentralisation et de la Fonction Publique. Rapport annuel
sur l’état de la function publique, 2013. Disponível em: https://bit.ly/322dKnZZ. Acesso em: 27 out. 2021.
47
FRANÇA. Institut National de la Estatistique et des Études Économiques (INSEE). Population de 1999 à 2021.
Em 2021 a população é de 67. 407.241. Disponível em: https://bit.ly/3GS8nGT. Acesso em: 27 out. 2021.
48
BRASIL. IPEA. Atlas do Estado Brasileiro: 1985-2019. 2021a. Disponível em: https://bit.ly/3CuFS08. Acesso
em: 27 out. 2021.
49
OCDE. As políticas públicas da OCDE para responder ao coronavírus (COVID-19). Disponível em:
https://bit.ly/3mu8Ojh. Acesso em: 27 out. 2021.
17
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É importante enfatizar as particularidades do trabalho desenvolvido no serviço
público. Pesquisa realizada na França indica que o trabalho dos agentes blicos é mais
fragmentado em relação ao praticado no setor privado, cujos dados apontam a interrupção
constante nas tarefas executadas, com vistas a resolver imprevistos e ou lacunas por falta de
trabalhadores
50
.
O mesmo estudo, elaborado objetivando aportar elementos para o projeto de lei das
finanças (2014), visou delinear o trabalho dos agentes públicos franceses e constatou que
esses possuem condições de trabalho mais adversas em relação aos que atuam no setor
privado. Eles trabalham mais em horários atípicos (62% contra 46% na indústria e comércio);
65% consideram seu trabalho fragmentado, especialmente por serem constantemente
interrompidos para realizar tarefas não previstas; 29% não contam com descanso semanal
de 48 horas consecutivas contra 15% do setor privado; trabalham mais aos domingos e os
movimentos grevistas são constantemente enquadrados legalmente por estarem a serviço
do interesse comum e geral da população
51
.
No Brasil, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua)
indica que os salários médios são maiores no setor público para todos os veis de
escolaridade, quando comparados ao setor privado
52
. Tal dado explica-se pelas exigências
estabelecidas para ingresso no âmbito público, posto ser via concurso público, sustentado
em princípios formais objetivos para contratação e, portanto, garantia de um vel de
qualificação mais elevado em relação ao privado, que, por sua vez, conta invariavelmente
com alto grau de subjetividade. O mesmo estudo aponta que metade do funcionalismo
ganhava até três salários-mínimos e 3% acima de dez salários-mínimos, em 2018
53
.
50
DARES, 2013 apud PORS, ASCHIERI, 2015
51
Sobre isso ver FRANÇA. Ministère des Finances et des Comptes Publiques. Les principales mesures du projet
de loi des finances 2014. 2014. Disponível em https://bit.ly/3msjzCp. Acesso em: 27 out. 2021.
52
BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE. PNAD Contínua - Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3wuoxSU. Acesso em: 28 out. 2021.
53
Equivalente a US$ 237,37, à época, e em 2021 a US$ 192,00.
18
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Gráfico 1 Participação do emprego público, por nível federativo (1950-2019)
Fonte: RAIS/ME. Atlas do Estado Brasileiro, IPEA
54
.
Conforme pesquisa PNAD 2018
55
a média salarial dos portadores de diploma do
ensino superior é de R$ 4.453,00, quando contratados pelas empresas privadas, enquanto
na função pública é de R$ 5.681,00. Tal fenômeno pode levar a constatações generalizantes,
posto que invisibilizam variações importantes. Uma amostra simples seria cotejar os salários
e auxílios (moradia, saúde, alimentação entre outros) percebidos pelo judiciário e por
professores.
5. Ataques recentes à função pública no Brasil
O governo Jair Bolsonaro (2018-2022) é aqui compreendido como adepto do
ultraliberalismo, pois radicaliza os preceitos conservadores do liberalismo em favor da elite
dominante no país e, congruente a tais princípios, persegue uma trajetória de desmonte do
Estado, confisco de direitos e fim de políticas sociais a exemplo da Reforma da Previdência,
o teto dos gastos entre outros - e tem, igualmente, tecido sucessivas tentativas para
agudizar as reformas administrativas, cujas iniciativas estão calcadas na flexibilização das
formas de contrato no âmbito do serviço público.
54
BRASIL. IPEA. Atlas do Estado Brasileiro: 1985-2019. 2021a. Disponível em: https://bit.ly/3CuFS08. Acesso:
em 27 out. 2021.
55
BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE. PNAD Contínua - Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3wuoxSU. Acesso em: 28 out. 2021.
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Em fevereiro de 2020, publicou a Medida Provisória
56
922, que possibilitou
ampliar tanto as formas de contratação temporária quanto os processos de terceirização
57
.
Em sua exposição de motivos
58
, o Ministro de Estado da Economia, Paulo Guedes, afirmou
que em decorrência da necessidade de adequação aos limites estabelecidos pelo Novo
Regime Fiscal, instituído pela Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016
59
, a
Administração Pública precisaria se valer de medidas mais céleres e eficientes na utilização
dos escassos recursos públicos. Deste modo, o concurso de servidores públicos efetivos
muitas vezes não se mostra como a melhor medida para atender situações emergenciais,
excepcionais ou sazonais.
Assim, o Ministro ressaltava aquilo que considerava como os avanços na Lei nº 8.745,
de 9 de dezembro de 1993
60
, aprovada no governo Itamar Franco (1992-1994)
61
, e ampliava
os limites legais para afrontar a força de trabalho pública efetiva, mas, concomitantemente,
ocultou o fato de que as condições emergenciais de contratação apontadas eram, em grande
parte, resultado da enorme defasagem no número de servidores de carreira
62
. Não obstante,
a Medida Provisória (MP) tenha perdido sua vigência após transcorridos os 120 dias por
não ter sido convertida em Lei Ordinária pelo Congresso Nacional , é possível afirmar que
56
Destaque-se que a Medida Provisória é norma com foa de lei por tempo determinado. Para conhecer a
tramitação, consultar: https://bit.ly/3wrSQJD.
57
BRASIL. Medida Provisória nº 922, de 28 de fevereiro de 2020. Altera a Lei 8.745, de 9 de dezembro de
1993, que dispõe sobre a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de
excepcional interesse público, a Lei 10.820, de 17 de dezembro de 2003, que dispõe sobre a autorização
para desconto de prestações em folha de pagamento, a Lei 13.334, de 13 de setembro de 2016, que cria o
Programa de Parcerias de Investimentos - PPI, e a Lei 13.844, de 18 de junho de 2019, que estabelece a
organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Brasília: Diário Oficial da União,
2020. Disponível em: https://bit.ly/3EroXfw. Acesso em: 27 out. 2021.
58
BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Exposição de Motivos nº 00047/ME, de 2 de setembro de 2020. 2020d.
Disponível em: https://bit.ly/3bkcYUf. Acesso em: 28 out. 2021.
59
BRASIL. Emenda Constitucional 95, de 15 de Dezembro de 2016. Brasília: Diário Oficial da União, 2016.
Disponível em: https://bit.ly/3bnhdyw. Acesso em: 28 out. 2021.
60
BRASIL. Lei 8.745, de 9 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a contratação por tempo determinado para
atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, nos termos do inciso IX do art. 37 da
Constituição Federal, e outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 1993b. Disponível em:
https://bit.ly/3jPOkjf. Acesso em: 28 out. 2021.
61
À época, Fernando Henrique Cardoso era Ministro de Estado da Fazenda, cargo que ocupou de 19 de maio de
1993 até 30 de março de 1994.
62
O exemplo patente é dado na própria exposição de motivos ao caracterizar o quadro de demandas
represadas na Previdência Pública, oblitera-se, contudo, que a ausência histórica de quadros denunciada pelo
movimento sindical da categoria é sua principal causa. Cf. BRASIL. EM nº 00038/2020 ME. 2020b. Disponível
em: https://bit.ly/3GutKhY. Acesso em: 28 out. 2021.
20
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sua lógica foi transplantada para a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Reforma
Administrativa PEC 32/2020
63
.
A PEC 32, cujo foco é alterar as regras de contratação aos novos ingressantes na
função pública nacional, pretende estabelecer cinco carreiras blicas, sendo apenas uma
com estabilidade no cargo, além de alterar significativamente os princípios jurídico-políticos
que definem o sentido social do funcionalismo no país
64
. Os desmembramentos da carreira,
conforme a proposta original, seriam: (1) vínculo de experiência
65
, (2) vínculo por prazo
determinado
66
, (3) cargo com vínculo por prazo indeterminado
67
, (4) cargo típico de Estado,
com garantias, prerrogativas e deveres diferenciados reservado aos servidores que
tenham como atribuição o desempenho de atividades que são próprias do Estado, sensíveis,
estratégicas e que representam, em grande parte, o poder extroverso do Estado; e, (5)
63
BRASIL. mara dos Deputados. PEC 32/2020. Altera disposições sobre servidores, empregados públicos e
organização administrativa. 2020c. Disponível em: https://bit.ly/3CrXmds. Acesso em: 28 out. 2021.
64
Em termos de princípios formais que regem a Administração Pública, aqueles definidos no Art. 37 da
Constituição Federal de 1988: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência. A PEC 32 enviada pelo Governo Jair Bolsonaro (2018-2022), propunha
alterar tal artigo para incluir os de transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa
governança pública e subsidiariedade. A introdução desses princípios está atualmente suprimida no debate do
texto da PEC 32 na Câmara dos Deputados em outubro de 2021.
65
A principal alteração em relação ao atual estágio probatório seria a possibilidade de a Administração Pública
convocar diversos candidatos aprovados fora do quadro de vagas disponíveis e levá-los à competição pública,
no exercício da função, para a contratação no cargo por tempo indeterminado ou cargo típico de Estado
somente daqueles melhor avaliados dentro do limite de vagas concursado. Propunha-se, assim, uma espécie de
seleção competitiva cujos critérios de intensidade no trabalho, além de aspectos políticos e administrativos,
seriam marcadores centrais para a demissão ou a contratação. Além disso, a introdução do duplo caminho a
seguir (contrato por tempo indeterminado e cargo em carreira típica de Estado) também difere da situação
atual do estágio probatório, não assegurando ao necessariamente a estabilidade após o fim do período de
competição.
66
A medida introduz a lógica dos empregados blicos das empresas estatais no serviço público regular, em
todo o território nacional, inclusive na Administração Direta e, além disso, torna esses contratos ainda mais
precários por determinar um prazo específico de duração, sem prever necessariamente medidas de amparo ao
final do tempo de serviço ou sequer maior segurança jurídica aos trabalhadores, no caso de rescisão
antecipada de contrato por parte dos entes federados. A medida assemelha-se ao contrato por tempo
determinado francês (CDD), mas compreendido em um contexto mais amplo e aplicado ao do serviço público e
anuncia como a PEC 32 é a política mais incisiva contra os direitos adquiridos da força de trabalho nacional de
toda a história brasileira.
67
Assemelha-se aos contratos por tempo indeterminado, existentes para os trabalhadores privados na França,
mas aqui é aplicado ao serviço público e tende a ser, junto ao contrato por tempo determinado, a maior faixa
de contratão da força de trabalho pública nacional se aprovada a reforma. A caracterização abstrata desse
desmembramento da carreira deixa mostras desse intento: para o desempenho de atividades contínuas, que
não sejam típicas de Estado, abrangendo atividades técnicas, administrativas ou especializadas e que envolvem
maior contingente de pessoas. Cf. BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Exposição de Motivos 00047/ME,
de 2 de setembro de 2020. 2020d. Disponível em: https://bit.ly/3bkcYUf. Acesso em: 28 out. 2021.
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cargo de liderança e assessoramento, que envolve os existentes cargos em comissão e as
funções de confiança, e ainda outras funções com atribuições estratégicas, gerenciais ou
técnicas
68
.
A estabilidade na carreira ficaria reservada única e exclusivamente às carreiras
típicas. Antes de denotar uma tipicidade inata ao Estado, é importante destacar que o
típico
69
aqui obedece estritamente à concepção de Estado inscrita no cerne da Reforma
Administrativa desde os tempos do MARE e que a estabilidade limita-se ao sentido estrito da
existência de limites na ação Estatal quanto à demissão do trabalhador, como se depreende
do texto da PEC 32:
Com vistas à garantia de eficiência da gestão pública, os servidores estáveis
ocupantes de cargo típico de Estado poderão perder o cargo público em
virtude de decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial
colegiado; mediante processo administrativo, assegurado ao servidor ampla
defesa; ou mediante avaliação periódica de desempenho, na forma da lei,
assegurada a ampla defesa. Mesmos critérios serão aplicados aos
servidores que já adquiriram estabilidade no serviço público
70
.
Portanto, não se trata da estabilidade orientada pelos princípios de segurança
jurídica e de proteção social da função pública que essa força de trabalho exerceria a
despeito dos anseios particulares dos governos da ocasião, mas de uma limitação de seu
sentido às restrições legais que o próprio Estado-empregador pode utilizar para justificar a
demissão administrativa ou judicial de sua força de trabalho. A introdução de mecanismos
de avaliação de metas e desempenho, em vigor desde a Nova Gestão Pública em 1995,
bem como critérios de demissão para essa fração de trabalhadores, ditos estáveis,
corroboram com o argumento aqui delineado.
A ausência de mecanismos frágeis como aqueles definidores da estabilidade
estatutária para os demais trabalhadores do serviço público nacional, entretanto, parece ser
68
BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Exposição de Motivos nº 00047/ME, de 2 de setembro de 2020. 2020d.
Disponível em: https://bit.ly/3bkcYUf. Acesso em: 28 out. 2021.
69
A PEC 32 propõe que a definição seja realizada após a aprovação da Emenda Constitucional § 1º Os critérios
para definição de cargos típicos de Estado serão estabelecidos em lei complementar federal.
70
BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Exposição de Motivos nº 00047/ME, de 2 de setembro de 2020. 2020d.
Disponível em: https://bit.ly/3bkcYUf. Acesso em: 28 out. 2021.
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um dos maiores ganhos que o governo pretende auferir com a PEC 32
71
. Se aprovada, será
possível antever que, em curto espaço de tempo, parte significativa do funcionalismo
público a contar pelos próprios órgãos da Administração Direta, como os Ministérios e
órgãos superiores, cuja média de idade dos servidores públicos da atual carreira é
relativamente elevada, e com maior previsão de aposentadorias nos próximos dez anos
72
deverá ser alocada nos tipos de contratos não-estáveis, tornando essa massa de servidores
cada vez mais sujeita à discricionariedade dos governos.
A inexistência de mecanismos de proteção social como alguma modalidade de
seguro-desemprego, de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) ou de fundo
indenizatório pela rescisão antecipada do contrato reconfigura a ausência de estabilidade
para a maioria das novas categorias pretendidas, conferindo-lhes todas as características
necessárias para ser possível qualificá-las como geradoras de vínculos precários. Se aprovada
a proposta, as condições de reprodução da força de trabalho dos servidores públicos
poderão ser colocadas em condições ainda mais periclitantes do que as atualmente em vigor
para os trabalhadores com CLT, no período posterior à aprovação da Reforma Trabalhista de
2017
73
, aprovada no Governo de Michel Temer (2016-2018). Especialmente tendo em vista
que, além da insegurança advinda da perda dos contratos, para todos os trabalhadores não
integrantes das carreiras típicas de Estado, a Administração Pública poderia reduzir
jornadas e salários de forma arbitrária e unilateral, como previsto no texto enviado ao
parlamento.
A Reforma Administrativa pode, ainda, ser vislumbrada em um contexto mais amplo,
na esteira de medidas aprovadas, como a referida Reforma Trabalhista, o novo regime
fiscal (teto de gastos) introduzido na Emenda Constitucional 95
74
e a reforma da
previdência, visto que tais medidas atingem, direta e indiretamente, a totalidade dos
71
BRASIL. mara dos Deputados. PEC 32/2020. Altera disposições sobre servidores, empregados blicos e
organização administrativa. 2020c. Disponível em: https://bit.ly/3CrXmds. Acesso em: 28 out. 2021.
72
BRASIL. Painel Estatístico de Pessoal. 2021b. Disponível em: https://bit.ly/3bn98Kl. Acesso em: 30 out. 2021.
73
BRASIL. Lei 13.467, de 13 de Julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada
pelo Decreto-Lei nº 5.452, de de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de
maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho.
Brasília: Diário Oficial da União, 2017. Disponível em: https://bit.ly/3w0tsuc. Acesso em: 28 out. 2021.
74
BRASIL. Emenda Constitucional 95, de 15 de Dezembro de 2016. Brasília: Diário Oficial da União, 2016.
Disponível em: https://bit.ly/3bnhdyw. Acesso em: 28 out. 2021.
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trabalhadores brasileiros. No conjunto, evidencia-se a intencionalidade de ajustar as
condições de reprodução da força de trabalho nacional ao padrão de acumulação capitalista-
dependente, no qual as condições de renda dos trabalhadores não implicam em efeitos
diretamente proporcionais nas taxas de realizão das mercadorias produzidas anualmente
pela indústria. A economia brasileira e seu padrão de industrialização, diferentemente do
caso francês, seguem marcados pela dinamização dos setores exportadores, especialmente
aqueles vinculados aos principais produtos da cesta de exportações (petróleo e carburantes,
minérios, carboidratos e proteínas animais). Um dos efeitos sociais desse padrão é
justamente a autonomização entre a prodão e a realização das mercadorias: os principais
setores exportadores produzem suas mercadorias no interior do país, mas realizam seus
produtos no mercado mundial, não dependendo, em termos absolutos, da capacidade de
consumo da sociedade brasileira para tanto. Essa autonomização relativa entre os ciclos de
produção e de realização da mercadoria, no território, permite que a resolução dos ciclos de
crise intensifique a queima de parcelas significativas de meios de vida dos trabalhadores,
sejam eles diretos (renda, auxílios, benefícios e salários) ou indiretos (direitos trabalhistas,
sociais, previdenciários e acesso às políticas sociais, tais como educação, saúde, saneamento
etc.) sem, com isso, comprometer a capacidade de escoamento da produção e dos estoques.
Mas o ajuste das condições de vida dos trabalhadores em cada unidade nacional
depende da equalização desses ajustes para a maioria dos estratos sociais. Nesse sentido,
procura-se com a Reforma Administrativa
75
reduzir ao máximo as diferenças entre a maior
parte dos servidores públicos (excluídos os trabalhadores das altas esfera do Poder
Judiciário, do Ministério Público, Ministérios de Estado, cargos de assessoramento e de
confiança e pessoal militar) e o restante dos trabalhadores empregados nos diferentes
ramos da indústria, nivelando por baixo as relações de trabalho, renda e acesso às políticas
sociais.
Pondera-se que, em particular, os trabalhadores do serviço público são, também,
alvos preferenciais por constituírem categorias profissionais com maior nível de
sindicalizão e experiências organizativas para a luta social, capazes de realizar greves e
75
BRASIL. mara dos Deputados. PEC 32/2020. Altera disposições sobre servidores, empregados públicos e
organização administrativa. 2020c. Disponível em: https://bit.ly/3CrXmds. Acesso em: 28 out. 2021.
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outras formas de resistência. Essa disposição, pela própria natureza da função pública, tem
potencial para elevar as reivindicações dos grupos sociais às demandas de interesse de toda
a classe trabalhadora, o que obstaculizaria, em alguma medida, a condução dos ajustes
pretendidos. A introdução de diferentes carreiras, com a consequente quebra de unicidade
bastante precária no marco legal e no plano fático atual, contribui para a dissolão da
solidariedade e cooperação, mas as avaliações de rendimento no trabalho com potenciais
consequências para a permanência do contrato ou, mesmo, para a celebração de
contratos de trabalhos futuros pode levar, em larga medida, à redução da capacidade de
mobilização desses sujeitos.
Por isso, o é demasiado afirmar que a Reforma Administrativa (PEC 32) procura
dilapidar a função pública, atribuindo conceitos e estruturações próprias a um regime de
concorrência pela venda da força de trabalho estatal, com vistas não apenas a transferir
perdas consequentes das crises, desde pelo menos a de 2007/2008, também para a parcela
de renda intermediária dos trabalhadores nacionais (servidores públicos dos extratos mais
baixos, especialmente do Pode Executivo, das empresas públicas e das autarquias), como,
simultaneamente, o faz para alcançar os trabalhadores brasileiros como conjunto.
Inequívoco que ao derrubar, em largo alcance, a capacidade de mobilização, a renda média e
os direitos desse segmento, existiriam margens maiores para a compressão dos níveis de
rendas e da execução das políticas sociais também para os demais trabalhadores.
Afinal, são os trabalhadores do serviço público os responsáveis pela dimensão
concreta da efetivão dos direitos e das políticas, nas escolas, unidades de saúde,
saneamento, abastecimento, fiscalização, distribuição entre outros. Um conjunto de direitos
que, em nome da propalada eficiência de gestão, inscrita na PEC 32 e legada há cadas
do discurso da reestruturação e reforma do Estado darão ampla vazão às pactuações ou
parcerias privadas, ou seja, nada menos que a privatização desses serviços públicos em
todos os âmbitos da federão e ou um retorno ao patrimonialismo, via indicação de
pessoas atreladas ao campo político majoritário no momento. A PEC 32 e a reforma do
trabalho no serviço público, de forma geral portanto, são do interesse maior de todos os
trabalhadores, públicos e privados, pois altera o destino da população.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Visou-se analisar a constituição e o desenvolvimento da função pública no Brasil e na
França, considerando-se como hipótese o fato de ocuparem posições distintas na economia
mundial, ambos perseguem e atuam para o fim da função pública.
Considera-se que o funcionalismo público é frequentemente evocado por um
discurso sustentado nos privilégios e no arcaísmo, mas oblitera os fundamentos do estatuto
e, sobretudo, quais foram as razões que o motivaram. Não obstante, esse estatuto se
inscreve em uma longa história na qual se articulam diferentes e complementares conceitos
de interesse geral, do serviço e da função pública.
Como evidenciou-se, o agente público trabalha para o interesse geral e assegura a
concretização dos direitos da população pelo trabalho concretizado. E, por essa razão, é
imprescindível a estabilidade no emprego, não por privilégio, mas para evitar ações
descontínuas à população, segundo as alterações nos cargos máximos e intermediários do
poder blico. Além disso, a seleção dos agentes públicos, via concurso público, assegura
distanciamento dos interesses particulares.
As ponderações construídas com base em Castel
76
e Pors e Aschieri
77
remetem à
importância da preservação dos servidores públicos, posto que o trabalho por eles exercido
estão vinculados diretamente à política pública que, em sua execução busca reduzir, ainda
que minimamente no Brasil, as desigualdades sociais. Por essa única razão, ressalta-se a
importância e a responsabilidade portada por esse conjunto de trabalhadores.
Apreende-se que mesmo a França, com forte adesão ao Estado do Bem-Estar Social,
vem adotando ainda que de forma gradativa e, às vezes, dissimulada , a Nova Gestão
Pública e com ela as inúmeras tentativas de destruição do serviço público. No Brasil,
especialmente desde o golpe de 2016, o Estado e o público estão sob forte ataque de
parcelas de políticos e da população beneficiárias da desigualdade social, expressa inúmeras
vezes pelo atual Ministro da Economia que, entre as tantas célebres frases discriminatórias,
76
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998;
CASTEL, Robert. L’Insécurité sociale. Qu’est -ce qu’être protégé?, Paris, Seuil, 2003; CASTEL, Robert. La montée
des incertitudes. Travail, protections, statut de l’individu. Paris: Éditions du Seuil, 2009.
77
PORS, Anicet; ASCHIERI, Gérard. La fonction publique du XXIème. Ivry-sur-Seine: Les éditions de l’atelier,
2015.
26
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particularmente direcionadas aos segmentos mais pobres da população, defendeu a
Reforma Administrativa classificando o funcionalismo público de parasita e insinuando que o
Estado - o hospedeiro - estaria morrendo, mas foi condenado frente à ação movida pelo
Sindicato dos Policiais Federais da Bahia
78
.
Em um cenário de destruição do que é público, com nítido favorecimento do setor
privado, desqualificar os funcionários públicos e precarizar suas formas de contratação
assume relevância. De um lado, propiciará a alta rotatividade desses profissionais; e, por
outro, ocorrerá a consequente descontinuidade na efetividade dos direitos à população.
Concordando com Linhart
79
, ajuíza-se que a subordinação é uma renúncia de si
mesmo e o crescente processo de individualização no capitalismo contemporâneo gera
sofrimento e desistência do trabalho e da vida.
REFERÊNCIAS
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carta-mulher de trinta. Direito, Estado e Sociedade, n. XX 2020. Disponível em
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sobre o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União. Rio de Janeiro: Diário Oficial da
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BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC 32/2020. Altera disposições sobre servidores,
empregados públicos e organização administrativa. 2020c. Disponível em:
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insuficiência de desempenho do servidor público estável, e dá outras providências. 1998.
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BRASIL. Câmara dos Deputados. PLP 550/2018. Altera o art. 41, § 1º, III, da Constituição
Federal, para dispor sobre a perda DA ESTABILIDADE do Servidor Público Estável por falta de
desempenho e produtividade. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3vSP8IK. Acesso em: 27
out. 2021.
78
CONJUR. Paulo Guedes é condenado por chamar servidores de "parasitas". 2020. Disponível em
https://bit.ly/3BYidnJ. Acesso em: 27 out. 2021.
79
LINHART, Danièle. Modernisation et précarisation de la vie au travail. Papeles del Centro de Estudios sobre
la Identidad Colectiva (CEIC), n. 49, 2009. Disponível em: https://bit.ly/3qygK5B. Acesso em 10 de novembro
de 2010.
27
Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano
Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região
VENCO, Selma; ASCHIERI, Gérard; SEKI, Allan Kenji. O sentido social e os desafios da função pública no Brasil e na França. Revista
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Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. 2018. Disponível em:
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BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de Julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de 3
de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de
adequar a legislação às novas relações de trabalho. Brasília: Diário Oficial da União, 2017.
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termos do inciso IX do art. 37 da Constituição Federal, e dá outras providências. Brasília:
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BRASIL. Medida Provisória nº 922, de 28 de fevereiro de 2020. Altera a Lei nº 8.745, de 9 de
dezembro de 1993, que dispõe sobre a contratação por tempo determinado para atender a
necessidade temporária de excepcional interesse público, a Lei nº 10.820, de 17 de
dezembro de 2003, que dispõe sobre a autorização para desconto de prestações em folha de
pagamento, a Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, que cria o Programa de Parcerias
de Investimentos - PPI, e a Lei nº 13.844, de 18 de junho de 2019, que estabelece a
organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Brasília: Diário
Oficial da União, 2020. Disponível em: https://bit.ly/3EroXfw. Acesso em: 27 out. 2021.
BRASIL. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Exposição de Motivos nº 00047/ME, de 2 de setembro
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