A classe plataformizada tem dois sexos:
trabalho, algoritmização e resistência
1
The platformed class has two sexes: labor, algoritmization and resistance
La clase plataformada tiene dos sexos: trabajo, algoritmización y resistencia
Viviane Vidigal
RESUMO
Este artigo tem como escopo iluminar a incorporação da questão de gênero à plataformização
do trabalho. O recorte de gênero, dentro do mosaico de atividades do trabalho plataformizado,
ainda é pouco pautado e, pretende-se contribuir para a superação dessa lacuna. Sustenta-se que
o modo como o trabalho se organiza por plataformas, entrelaçado à ausência de uma rede de
proteção trabalhista e social, contribui para que as mulheres sejam as mais afetadas nesse
modelo, atualizando e aprofundando a desigualdade de gênero existente em outras
configurações laborais. Os três eixos analíticos principais do artigo, trabalho, algoritmização e
resistência se desdobram nas hipóteses de que, a conformação do(a) trabalhador(a) por
demanda produz um trabalhador(a) ideal que, dada a divisão sexual do trabalho, o é gênero
neutro. O gerenciamento algorítmico se apropria, organiza e reproduz um conjunto de
desigualdades já existentes. Demonstra-se que as respostas algorítmicas aos anseios do capital
possuem viés de gênero. Na resistência ao trabalho despojado de direitos, questiona-se qual a
história que as mulheres constroem para si em que greves se engajam, como se articulam,
criam estratégias e negociam sua visibilidade. Para construir esses argumentos, serão
apresentados dados empíricos, recolhidos de entrevistas semiestruturadas realizadas com
trabalhadores(as) plataformizados(as) das seguintes atividades: transporte de passageiro,
entrega de comida e manicures, atuantes nas cidades de Campinas/SP e São Paulo/SP.
PALAVRAS-CHAVE: Plataformização, Gênero, Trabalho, Algoritmização, Resistência.
ABSTRACT
This article aims to highlight the incorporation of the gender issue into the work platform. The
gender cutout within the mosaic of activities of the platformed work is still poorly guided and it
is intended to contribute to overcoming this gap. It is argued that the way work is organized by
platforms, intertwined with the absence of a labor and social protection network, contributes to
women being more affected in this model, updating and deepening the existing gender inequality
in other labor configurations. The three main analytical axes of the article, work, algorithmization
and resistance unfold on the hypothesis that the conformation of the worker on demand
produces an ideal worker who, given the sexual division of labor, is not gender neutral.
Algorithmic management appropriates, organizes, and reproduces a set of already existing
inequalities. It is demonstrated that the algorithmic responses to the wishes of capital have a
gender bias. In the resistance to work stripped of rights, the question is what is the story that
women build for themselves in which strikes they engage, how they articulate, create
1
O título dado ao artigo foi inspirado no estudo que configurou marco na Sociologia do Trabalho de Elisabeth
Lobo: LOBO, Elisabeth. A Classe Operária tem Dois Sexos Trabalho, dominação e resistência. São Paulo:
Brasiliense, 1991. A autora analisa a segmentação por sexo no mercado de trabalho brasileiro nos anos 1970 e
1980. Tornou visível a organização política das mulheres em reivindicações e greves, desvendando a experiência
das trabalhadoras do período. Também inspirado no artigo de Hirata, Helena e Kergoat, Daniele: HIRATA, H.;
KERGOAT, D. A classe operária tem dois sexos. Revista de Estudos Feministas, Ano 2, 1º semestre, 1994. É
importante a ressalva sobre o nome do artigo ser uma homenagem a dois clássicos da sociologia do trabalho que
se utilizam da palavra “sexo”. A esse despeito, não se descura da existência de debate conceitual entre sexo e
gênero e, ressalta-se que o artigo se propõe a analisar questões de gênero, centralizando a mulher.
2
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strategies, and negotiate their visibility. To build these arguments, empirical data will be
presented, collected from semi-structured interviews carried out with platform workers in the
following activities: passenger transport, food delivery and manicures, working in the cities of
Campinas/SP and São Paulo/SP.
KEYWORDS: Platform, Gender, Labor, Algorithmization, Resistance
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo resaltar la incorporación de la temática de género en la
plataforma de trabajo. El recorte de género dentro del mosaico de actividades del trabajo en
plataformas aún está mal guiado y se pretende contribuir a superar esta brecha. Se argumenta
que la forma en que se organiza el trabajo a través de plataformas, entrelazada con la ausencia
de una red laboral y de protección social, contribuye a que las mujeres se vean más afectadas en
este modelo, actualizando y profundizando la desigualdad de género existente en otras
configuraciones laborales. Los tres ejes analíticos principales del artículo, trabajo, algoritmización
y resistencia se desarrollan sobre la hipótesis de que la conformación del trabajador a demanda
produce un trabajador ideal que, dada la división sexual del trabajo, no es neutro en cuanto al
género. La gestión algorítmica se apropia, organiza y reproduce un conjunto de desigualdades ya
existentes. Está demostrado que las respuestas algorítmicas a los deseos del capital tienen un
sesgo de género. En la resistencia al trabajo despojado de derechos, la pregunta es cuál es la
historia que las mujeres construyen para sí mismas, en qué huelgas se involucran, cómo se
articulan, crean estrategias y negocian su visibilidad. Para construir estos argumentos, se
presentarán datos empíricos, recolectados a partir de entrevistas semiestructuradas realizadas
con trabajadores de la plataforma en las siguientes actividades: transporte de pasajeros, reparto
de alimentos y manicura, trabajando en las ciudades de Campinas/SP y São Paulo/SP.
PALABRAS CLAVE: Plataforma, Género, Trabajo, Algoritmización y Resistencia
INTRODUÇÃO
Michelle Perrot afirmou que a história, por muito tempo, havia se esquecido das
mulheres que foram “mais imaginadas do que descritas ou contadas”
2
. Ao longo do tempo foi
sendo possível reunir artigos e pesquisas que romperam com esse silêncio e suas “zonas
mudas”. Os esforços contínuos depreendidos para superar as ausências delas na história
também envolveram a tentativa de compreender a inserção, a presença e a vida das mulheres
no mundo do trabalho.
O capitalismo de plataforma
3
e a uberização
4
do trabalho são conhecidos, e já, há
2
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da História. Bauru: Edusc, 2005.p.11.
3
Nick Srnicek se debruça sobre o estudo das plataformas. A justificativa do autor para este foco é a necessidade
de vislumbrar se este novo conjunto de tecnologias e modelos organizacionais representa um novo regime de
acumulação ou a continuação de regimes precedentes. É possível compreender o trabalho plataformizado como
um ecossistema envolvendo um conjunto de actantes, ou seja, atores humanos e não humanos, empresas,
plataformas, usuários/consumidores, Estado, algoritmo, programas de rastreamento, banco de dados, entre
outros dispositivos. De acordo o autor as plataformas “são infraestruturas digitais que possibilitam a interação
entre dois ou mais grupos” (SRNICEK, N. Platform capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017, p. 43).
4
[Trata-se de] “uma nova forma de organização, de controle e gerenciamento do trabalho, a qual conta com o
par autogerenciamento/eliminação de vínculos empregatícios e regulações públicas do trabalho.” ABÍLIO,
3
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algum tempo, despertam discussões na sociedade. O recorte de gênero, dentro do tema, no
entanto, ainda é pouco pautado. A pesquisa em desenvolvimento pretende contribuir para a
superação dessa lacuna, ao ‘iluminar’ a incorporação da questão de gênero ao processo de
uberização do trabalho e ao capitalismo de plataforma.
A hipótese apresentada no presente artigo é a de que o modelo de trabalho
plataformizado atualiza e aprofunda a desigualdade denero existente em outras
configurações laborais e agudiza os mecanismos de discriminação às mulheres. Para construir
os argumentos, demonstra-se que o modo como o trabalho se organiza por plataformas,
entrelaçado à ausência de uma rede de proteção trabalhista e social, contribui para que as
mulheres sejam mais afetadas nesse modelo laboral.
O artigo é dividido em três eixos principais: trabalho, algoritmização e resistência. O
primeiro eixo, “trabalho”, aborda a divisão sexual do trabalho plataformizado. As entrevistas
realizadas nos levarão a refletir como a divisão sexual do trabalho se reproduz na configuração
do trabalho plataformizado e irão revelar a costura da dinâmica produtora de diferenças
tecida entre trabalho e gênero. No segundo eixo, “algoritmização”, será debatido o
gerenciamento algorítmico. Discute-se o controle do trabalho realizado pelos algoritmos e a
avaliação do trabalho pela esfera do consumo. Dessa forma, a análise recai na relação do
algoritmo com as trabalhadoras, e destas com os(as) consumidores(a). O terceiro e último
eixo, a resistência”, versa sobre o papel das mulheres- trabalhadoras plataformizadas- nos
movimentos pela luta por direitos. O artigo está estruturado, para além da introdução, da
seguinte forma: na primeira parte, será apresentada a organização do trabalho
plataformizado, o debate acerca da qualificação jurídica dos(as) trabalhadores(as), breve
panorama do mercado de trabalho brasileiro e o contexto que leva à inserção de
trabalhadores(as) ao trabalho em plataformas digitais. Na segunda parte, será apresentada a
divisão sexual do trabalho plataformizado. Na terceira, será problematizado o modelo de
Ludmila Costhek. A eliminação dos custos associados ao direito e à proteção do trabalhador constitui a espinha
dorsal da reforma trabalhista. [Entrevista cedida a] Patricia Fachin. Revista IHU on-line,13 de dez. 2017.
Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/574556-a-eliminacao-dos-custos-
associados-ao-direito-e-a-protecao-do-trabalhador-constitui-a-espinha-dorsal-da-reforma-trabalhista-
entrevista-especial-com-ludmila-abilio. Acesso em: 20 de mar. 2019.
4
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gestão algorítmica, a relação do algoritmo com as trabalhadoras para na quarta parte, discutir
a avaliação pela esfera do consumo. Na quinta parte, o artigo aborda a resistência. A última
parte estabelece considerações finais.
Os dados aqui apresentados são frutos de duas pesquisas qualitativas: uma concluída
e outra em andamento. A primeira, intitulada "As ilusões da uberização: um estudo à luz da
experiência de motoristas Uber", foi realizada entre março de 2017 e dezembro de 2019, na
qual foram formalmente entrevistadas 22 pessoas com questionário semiestruturado: 19
homens e 03 mulheres, motoristas de UberX
5
nas cidades de Campinas (SP) e São Paulo (SP).
A segunda, intitulada "Profissão Aplicativo: a plataformização do trabalho feminino"
6
foi
iniciada em março de 2020. As entrevistas estão em andamento e o estudo conta com
entrevistados(as) em profundidade por questionário semiestruturado: motoristas da Uber,
motoristas da Lady Driver
7
, entregadores(as) de comida do iFood
8
, e manicures da Singu
9
, nas
cidades de Campinas (SP) e São Paulo (SP). As relações do trabalho de plataforma com gênero,
raça e classe só podem ser respondidas caso a caso. A distribuição desigual de oportunidades
e os desafios variam, pois, a Uber é muito diferente do iFood, que, por sua vez, é muito
diferente da Singu. De modo que traremos um panorama geral das tensões encontradas com
os recortes específicos de cada atividade ainda de forma incipiente.
Para este artigo, contaremos com excertos de cinco entrevistas. Os nomes
apresentados são fictícios e seguem o acordo de anonimato firmado entre entrevistados(as)
e a pesquisadora. Dos(as) entrevistados(as) motoristas de passageiros(as), a maioria foi
aleatoriamente escolhida, a partir de chamadas de transportes realizadas pelo aplicativo da
pesquisadora como usuária da Uber. Uma parcela das entrevistas foi realizada no interior do
automóvel, durante viagens solicitadas pela pesquisadora como uma passageira regular, por
5
A principal e mais usada opção da Uber, o UberX oferece viagens com preços acessíveis em carros compactos
de quatro portas e ar-condicionado. Presente em todas as cidades brasileiras onde a Uber opera. Informação
disponível em: https://www.uber.com/pt-BR/blog/categorias-da-uber/.
6
Pesquisa integrante do Convênio de Cooperação celebrado entre o Ministério Público do Trabalho - PRT 15ª
Região e a Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP.
7
É um aplicativo de transporte que conecta passageiras e motoristas mulheres. https://ladydriver.com.br/.
8
O iFood é uma empresa brasileira fundada em 2011, atuante no ramo de entrega de comida pela internet.
9
Empresa aplicativo de profissionais da beleza. Cerca de 200.000 clientes cadastrados. Mais de 3.000
profissionais. https://singu.com.br/.
5
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compreender ser fundamental fazer algumas viagens no automóvel para garantir a presença
do contexto laboral nas entrevistas, a fim de facilitar a compreeno da pesquisadora acerca
do trabalho em trânsito. Explica-se ao leitor, que ficará clara a interlocução entre
pesquisadora e trabalhadores(as) ao longo do texto, que tem seus eixos analíticos
inteiramente entrecortados por teoria e empiria.
1. Trabalho plataformizado: contexto, organização e vínculo jurídico dos(as)
trabalhadores(as)
Para analisarmos a forma como as plataformas organizam o trabalho, tomando por
lócus analítico o Brasil, é necessário levar em consideração a especificidade histórica nacional.
Contido no objeto em análise, está o contexto social, econômico e político que tornou possível
a configuração de novas formas de relações de trabalho no Brasil contemporâneo. O ethos
profissional se desenvolve em um contexto neoliberal de sucateamento da Justiça do
Trabalho, da corrosão, derrelição, e devastação cabal dos direitos trabalhistas, do eufemismo
da flexibilização das leis e do incentivo do Estado ao empreendedorismo individual
10
.
As plataformas se popularizam no país em meados de 2014, não somente em meio ao
receituário neoliberal, mas também em meio à quarta recessão econômica, que vivenciamos
desde 2015, na qual os(as) trabalhadores(as) passaram a ter rendimento menor e ocupações
a menos. Hoje, o desemprego generalizado e a pobreza crescente apontam para direção
inversa à verificada nos anos 2000. O índice de desemprego no Brasil é de 14,7%, de acordo
com dados oficiais de 2021. O número de desempregados é de 14.8 milhões, de acordo com
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
11
, sendo as mulheres maioria. Dessa forma,
encontram no trabalho plataformizado uma alternativa ao desemprego prolongado.
10
CASTRO, Viviane Vidigal. As ilusões da uberização: um estudo à luz da experiência de motoristas Uber.
Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, 2020. Disponível em:
http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/343227/1/Castro_VivianeVidigalDe_M.pdf
. Acesso em:
10 de set. 2021.
11
Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php.
6
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Na atual recessão, os direitos sociais e trabalhistas voltaram a ser ameaçados, tal como
nos governos neoliberais durante os anos de 1990. A redução dos direitos sociais e trabalhistas
está em voga
12
. A plataforma do Governo Temer assimilou as diretrizes do documento
peemedebista Ponte para o Futuro, que foi renomeado, passando a Para reconstruir o Brasil,
que constitui, em certa medida, retomada da agenda neoliberal dos anos 1990. Uma das
principais ações tomadas pelo governo do presidente da República Michel Temer foi a
Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017).
A Reforma Trabalhista trouxe mudanças legislativas relevantes, das quais destacamos
a regulamentação do trabalho intermitente
13
, já existente em outros países
14
e que, em suma,
pressupõe que o(a) trabalhador(a) seja convocado(a) conforme a demanda e a percepção
do(a) empregador(a) e seja remunerado(a) com base nessas horas que efetivamente
trabalhar. Seus outros direitos como as férias, por exemplo, sejam concedidos
proporcionalmente à intermitência do contrato.
A despeito da previsão celetista do trabalhador intermitente ser empregado
subordinado e os trabalhadores plataformizados não possuírem tal estatuto jurídico, ao
positivar tal situação, o Estado naturaliza a situação de intermitência, dando um
estabelecimento de normalidade em apenas ser remunerado quando se é chamado. Nesse
sentido, a Reforma Trabalhista foi uma chancela do Estado ao processo de uberização, ao
legalizar tal situação que é encontrada no trabalho intermediado, organizado e controlado por
plataformas digitais. O trabalho uberizado é, simultaneamente, zero hora e vinte e quatro
12
POCHMANN, Márcio. Recessão, direitos sociais e trabalhistas. Democracia e Mundo do Trabalho em Debate,
2016. Disponível em: http://www.dmtemdebate.com.br/recessao-direitos-sociais-e-trabalhistas
. Acesso em: 20
de out. 2020.
13
Trabalho intermitente reforma trabalhista “Art. 443. O contrato individual de trabalho poderá ser acordado
tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para
prestação de trabalho intermitente. § 3º Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a
prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação
de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade
do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria” (NR)
14
O modelo do contrato de trabalho intermitente já existe em outros países: em Portugal, sob o mesmo nome,
desde a promulgação do Código do Trabalho em 2009; na Itália, através da Lei Biaggi, em 2003, nomeado “Lavoro
intermitente” ou “chiamata”; na Alemanha, desde 1985, “Lei de Promoção do Emprego”, nomeado “Arbeit Auf
Abruf”; nos Estados Unidos, na figura dos trabalhadores sujeitos ao “just-in-time scheduling”; e na Inglaterra, o
zero-hour contract”, no qual o trabalhador vive em constante sobreaviso, se qualquer garantia do número de
horas que trabalhará mensalmente e, por conseguinte, de sua remuneração.
7
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horas, zero hora ou vinte e quatro horas, no sentido de zero ser um dado real para o dia que
os(as) trabalhadores(as) não receberem nenhuma chamada que resulte em trabalho
remunerado, enquanto que o vinte quatro horas é o tempo de trabalho não remunerado
que o(a) trabalhador(a) uberizado(a) pode ficar de prontidão, na espera por um chamado
de trabalho remunerado
15
.
É nesse contexto que, segundo Antunes, “floresce uma forma mascarada de trabalho
assalariado que assume a aparência de um não-trabalho, que na concretude brasileira tem
como exemplo os empreendedores’, obliterado pelo ideário mistificador do trabalho sem
patrão’”
16
. Valendo-se da retórica empreendedorista, as empresas plataformizadas rejeitam
ter vínculos empregatícios com os(as) trabalhadores(as), a quem dizem apenas fornecer a
tecnologia do serviço. As plataformas consideram-se parceiras dos(as) trabalhadores(as) ao
auxiliar a relação de oferta e demanda entre aquele(a) e o usuário. Contratam com a
mensagem: “Você não trabalha para gente, você trabalha com a gente”
17
. Chamando
seus(suas) trabalhadores(as) por epítetos como artista (Singu) e parceiro (Uber), para afastá-
los(as) de serem reconhecidos não só como sendo empregados(as), mas também como sendo
trabalhadores(as).
Vender a ideia de independência dos(as) profissionais é uma estratégia para se
distanciar deles(as) e das obrigações e encargos que teriam que assumir caso admitissem o
que se vê na prática: que controlam toda a relação laboral e criam relações de poder em que
os(as) trabalhadores(as) são o lado mais frágil. Negando a necessidade histórica (econômica,
15
VIDIGAL, Viviane; SOUTO MAIOR, Nívea. Zero ou Vinte quatro horas: a intermitência do trabalhador uberizado.
Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª região, v.24 n. 33, 2021 Florianópolis/SC.
16
ANTUNES, Ricardo. Trabalho uberizado e capitalismo virótico: entrevista com Ricardo Antunes. Digilabour,
2020. Disponível em:
https://digilabour.com.br/2020/06/14/trabalho-uberizado-e-capitalismo-virotico-
entrevista-com-ricardo-antunes. Acesso em: 20 de out. 2020.
17
No filme “Sorry we missed you”, de Ken Loach, o personagem Ricky (Kris Hitchen), é um trabalhador cansado
de trabalhar para outros. Com a intenção de ganhar um dinheiro extra, quitar suas dívidas e comprar uma casa
própria, tenta uma vaga de entregador em uma empresa. Ao contratá-lo nos dizeres originais: “you don’t work
for us, you work with us”.
8
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social e fisiológica) de proteger o ser humano, que, para sobreviver na sociedade do capital,
precisa “vender” sua força de trabalho
18
.
A qualificação jurídica desses(as) trabalhadores(as) é objeto de disputa, sendo a atual
classificação difundida em nosso ordenamento, como de trabalhadores(as) autônomos(as)
19
.
Dessa forma, não são enquadrados(as) nos marcos da CLT. Não há uma definição legal sobre
o que seria o trabalhador autônomo, cabendo à doutrina trabalhista conceituá-lo. A relação
de trabalho autônoma, conforme esclarece Cassar “trata-se de relação onde o trabalhador
exerce ofício ou profissão com habitualidade, por sua conta e risco próprio”
20
. Segundo
Vilhena autônomo é "o trabalhador que desenvolve sua atividade com organização própria,
iniciativa e discricionariedade, além da escolha do lugar, do modo, do tempo e da forma de
execução"
21
.
Ao serem considerados autônomos(as) não possuem cumulativamente os seguintes
direitos: a) Registro em CTPS; b) Ao salário mínimo; c) Jornada de trabalho não superior a 8
horas diárias e 44 horas semanais; d) Seguro contra acidentes de trabalho; e) Irredutibilidade
do salário; f) Horas-extras com no mínimo 50% de acréscimo sobre o valor da hora normal;
g) Adicional noturno equivalente 20% do valor da hora normal; h) Décimo terceiro salário; i)
Repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; j) Férias, acrescidas de 1/3
constitucional; k) FGTS equivalente a 8% da remuneração do empregado e 40%, se demitido
sem justa causa , l) Seguro-desemprego se involuntário, m) Adicionais de insalubridade,
periculosidade e penosidade
22
.
Os(as) trabalhadores(as) estão vinculados às empresas por contrato de adesão. De
modo que as regras e diretrizes são unilateralmente estipuladas pelas empresas. Por meio das
18
SEVERO, Valdete Souto. Manual da reforma trabalhista: pontos e contrapontos / Valdete Souto Severo, Jorge
Luiz Souto Maior; organizadores Afonso Paciléo Neto, Sarah Hakim; prefácio Lívio Enescu. São Paulo: Sensus,
2017.
19
A despeito de existirem ações na Justiça do Trabalho, que concederam o vínculo empregatício, elas se
demonstram minoria, conforme estudos.
14
CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho - De acordo com a Reforma Trabalhista. Brasil: Método, 2014, p.
276.
21
VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de Emprego: Estrutura Legal e Supostos. 3. ed. São Paulo: Editora
LTr, 2005, p. 532-534.
22
Ressalvamos que as diversas relações de trabalho garantem alguns desses direitos acima. Todos esses direitos,
no entanto, somente relação de emprego formal possui.
9
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narrativas dos trabalhadores(as) plataformizados(as) podemos constatar que a forma de
contratação não possibilita nenhuma previsibilidade em relação ao número de horas
trabalhadas e nem à remuneração, pois receberão apenas pelas horas efetivamente
laboradas, trabalham por demanda e por metas
23
a cumprir. A precificação é feita pela
empresa. As jornadas podem ser extensas e intensas. O tempo que dedicam à atividade pode
ser permeado por outras atividades. Não há garantia de um salário-mínimo, nem de adicionais
salariais. Os intervalos interjornada e intrajornada são gestados por eles(as). As férias, quando
existentes, não são remuneradas. Pode ocorrer extinção unilateral dos contratos pelas
plataformas, sem apresentar maiores explicações. A contribuição ao fundo previdenciário é
individualizada e incerta, podendo comprometer a perspectiva de aposentadoria.
E além dessa intensa exploração, soma-se, segundo Antunes, uma
forte espoliação, presente quando os(as) trabalhadores(as) arcam com as despesas de
compra dos veículos, motos, carros, celulares, cortadores de unhas, alicates e suas respectivas
manutenções, dentre outros equipamentos de trabalho
24
.
Diante dessas condições laborais, propõe Antunes, que o capitalismo hoje, montado
sob plataformas, é uma espécie de protoforma do capitalismo. Ao relembrar que nas fábricas
de Manchester, as jornadas de trabalho humano frequentemente ultrapassavam 12 horas por
dia. Ou seja, em pleno século XXI, estaríamos presenciando o “reencontro entre o capitalismo
de plataforma com aquele praticado durante a protoforma do capitalismo”
25
. Tecendo um
paralelo entre esses dois lapsos temporais, afirma parecer existir:
(...) uma curiosa e tenebrosa similitude entre essas fases historicamente tão
distintas do capitalismo, mas que se reencontram: em plena era digital,
estamos presenciando a ampliação ilimitada, sob comando do capital
financeiro, de formas pretéritas de extração e sucção do excedente de
23
As metas são pré-determinadas pelo próprio trabalhador que só param de trabalhar quando as atingem.
24
ANTUNES, Ricardo. Trabalho uberizado e capitalismo virótico: entrevista com Ricardo Antunes. Digilabour,
2020. Disponível em:
https://digilabour.com.br/2020/06/14/trabalho-uberizado-e-capitalismo-virotico-
entrevista-com-ricardo-antunes. Acesso em: 20 de out. de 2020.
24
ANTUNES, Ricardo. Trabalho uberizado e capitalismo virótico: entrevista com Ricardo Antunes. Digilabour,
2020. Disponível em:
https://digilabour.com.br/2020/06/14/trabalho-uberizado-e-capitalismo-virotico-
entrevista-com-ricardo-antunes. Acesso em: 20 de out. de 2020.
10
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trabalho que recordam a exploração e espoliação daquela fase primeva do
capitalismo
26
.
A despeito das condições laborais recordar a fase primeva do capitalismo, há uma
novidade relevante e um traço característico importante na organização do trabalho por
plataformas: o algoritmo que, a partir de todas as informações que lhe são apresentadas, é
capaz de organizar toda a atividade. A tecnologia da informação e comunicação permite às
plataformas terem acesso a um grande contingente de trabalhadores(as) sem a necessidade
de contato direto, determinando as regras do negócio, e verificando o desempenho do
trabalho pelas notas dadas pelos usuários, explicam Daniela Muradas Reis e Eugênio
Delmaestro Corassa
27
.
Argumenta Morozov que a tecnologia digital é constituída de um conjunto de relações
que agrega a expropriação do trabalho humano, as informações, o algoritmo, o
consumerismo, entre outros. O autor destaca que os valores a despontarem dessas relações
são exclusivamente constituídos sobre a égide da subjetividade neoliberal
28
. Os eixos
analíticos, a seguir, visam compreender a imbricação desses elementos, jogando luz nas
questões de gênero que emergem dessas relações.
2. A divisão sexual do trabalho plataformizado
Apresentada a forma de organizar trabalho pelas plataformas e o contexto social,
econômico e político que tornou possível essa configuração de relação trabalhista no Brasil
contemporâneo, avançaremos à análise da divisão sexual do trabalho plataformizado. Alerta-
nos Kergoat e Hirata que sempre que se tenta fazer um balanço da divisão sexual do trabalho
26
ANTUNES, Ricardo. Trabalho uberizado e capitalismo virótico: entrevista com Ricardo Antunes. Digilabour,
2020. Disponível em:
https://digilabour.com.br/2020/06/14/trabalho-uberizado-e-capitalismo-virotico-
entrevista-com-ricardo-antunes. Acesso em: 20 de out. de 2020.
27
REIS, Daniela Muradas; CORASSA, Eugênio Delmaestro. Aplicativos de Transporte e Plataforma de Controle: o
mito da tecnologia disruptiva do emprego e a subordinação por algoritmos. In: CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de
Resende (Org.). Tecnologias Disruptivas e a Exploração do Trabalho Humano. São Paulo: Ltr, 2017.
28
MOROZOV, E. Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu, 2018.
11
Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano
Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região
VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
em nossas sociedades, chega-se à mesma constatação em forma de paradoxo: nessa matéria,
tudo muda, mas nada muda
29
.
A divisão sexual do trabalho é a forma, modulada histórica e socialmente, de divisão
do trabalho decorrente das relações sociais entre os sexos. Tem como características a
designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e,
simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social
adicionado
30
.
A emergência do conceito teve um papel muito importante para questionar o que era
a definição clássica de trabalho. As feministas que discutiram a divisão sexual do trabalho
estavam no campo do marxismo. Elas problematizaram que o debate de classe não explicava
e não dava conta do conjunto da realidade do trabalho. Em um primeiro momento, parecia
haver uma destinação dos homens ao trabalho chamado produtivo e uma destinação
prioritária das mulheres ao trabalho reprodutivo. Mas o que se viu foi que as mulheres estão
simultaneamente nas duas esferas: no trabalho produtivo e no trabalho reprodutivo
31
.
Portanto, a divisão sexual do trabalho não se restringe ao plano dicotômico de separação
entre trabalho produtivo e reprodutivo, ela se repõe, também, na própria esfera produtiva
com mulheres ocupando tradicionalmente nichos específicos do mercado de trabalho, os
chamados por Bruschini e Lombardi de “guetos”
32
ocupacionais femininos.
29
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da Divisão Sexual do Trabalho. Cadernos de
Pesquisa, v.37, n.132, set./dez. 2007. Disponível em: www.scielo.br/pdf/cp/v37/n132/a0537132.pdf.
Acesso
em: 01 de mar 2020.
30
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da Divisão Sexual do Trabalho. Cadernos de
Pesquisa, v.37, n.132, set./dez. 2007 p. 595-609. Disponível em: www.scielo.br/pdf/cp/v37/n132/a0537132.pdf.
Acesso em: 01 de mar 2020.
31
TEIXEIRA, M. A divisão sexual do trabalho e seus efeitos sobre as mulheres. DMT em Debate. Disponível em:
http://www.dmtemdebate.com.br/a-divisao-sexual-do-trabalho-e-seus-efeitos-sobre-as-mulheres
. Acesso em:
31 de jan. 2021.
32
BRUSCHINI, C. E LOMBARDI, M.R. A bipolaridade do trabalho feminino no Brasil Contemporâneo. Cadernos de
Pesquisa, julho de 2000, n. 110, São Paulo, Fundação Carlos Chagas.
12
Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano
Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região
VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
A divisão sexual do trabalho tem dois princípios organizadores: “o princípio de
separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico
(um trabalho de homem "vale" mais que um trabalho de mulher)”
33
.
Um estudo publicado em julho de 2018 pelas universidades de Chicago e Stanford
34
,
nos EUA, mostrou que a diferença de renda entre homens e mulheres, conhecida em inglês e
na literatura feminista como “gender gap”, também se estende para o trabalho em
aplicativos. Analisando dados de mais de 1 milhão de motoristas de Uber, a pesquisa mostrou
que as mulheres recebem um total de 7% de ganhos por hora a menos do que os homens. Os
pesquisadores acreditam que alguns fatores explicam a manutenção da desigualdade salarial
entre os sujeitos analisados: o fato de motoristas do gênero masculino dirigirem mais rápido
e a jornada dupla que impacta as pausas e a jornada diária que as mulheres podem fazer.
Alguns trechos de histórias dos(as) entrevistados(as) nos levará a refletir como se dá a
divisão sexual do trabalho plataformizado. A pesquisadora estava algum tempo chamando
Uber aleatoriamente, durante a pesquisa e no pré-campo, de segunda-feira a sexta-feira, em
horário comercial. A fim de verificar se existia perfil de motorista diverso daquele que havia
encontrado até então, chamou pelo aplicativo um(a) motorista, em um domingo, às nove da
noite. Quem a atendeu foi Solange, 32, ensino médio, a primeira motorista mulher
entrevistada. Solange alegou que só trabalhava à noite, depois das oito, todos os dias, mas
só no período noturno, sem hora determinada para terminar, até a hora que meu corpo
aguentar.
V.V.C- Já andei de Uber umas 30 vezes, você é a primeira mulher que
conheço. Só motoristas homens até agora...
Solange- Existe muito mais homens mesmo, no começo então eram só
homens. Agora até que tem mais mulheres.
V.V.C- Mas por que isso?
33
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da Divisão Sexual do Trabalho. Cadernos de
Pesquisa, v.37, n.132, set./dez. 2007. Disponível em: www.scielo.br/pdf/cp/v37/n132/a0537132.pdf.
Acesso
em: 01 de mar 2020.
34
COOK, Cody; DIAMOND, Rebecca; HALL, Jonathan V.; LIST, John A.; OYER, Paul. The Gender Earnings Gap in
the Gig Economy: Evidence from over a Million Rideshare Drivers. Disponível em:
https://web.stanford.edu/~diamondr/UberPayGap.pdf.
Acesso em: 04 de mar. 2019.
13
Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano
Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região
VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
Solange- Por que é pra dirigir, não falam que mulher é barbeira? (risos).
Quantas motoristas de ônibus, táxi, caminhão você por aí? Coisa de
homem.
V.V.C- Mas você sente preconceito por parte do passageiro?
Solange- No começo alguns homens brincavam comigo, mas agora todo
mundo é Uber, então fica meio que normal ter mulher também. E as
passageiras mulheres gostam mais, se sentem mais seguras. (Solange, 29 de
julho de 2018)
O discurso de Solange deixa clara a diferença de gênero na profissão, como as
mulheres foram se inserindo na profissão de motorista de aplicativos conforme ela foi se
popularizando. Uma série de processos e elementos confluem para explicarmos a grande
diferença numérica existente entre homens e mulheres nessa atividade e na de motociclista,
bem como a diferença positiva no número de mulheres em “guetos” ocupacionais femininos,
como é o trabalho de manicure.
Analisando a emergência e função justificadora do estereótipo negativo da "mulher
motorista", Berger
35
argumenta que a eclosão da primeira guerra mundial tirou os homens
estadunidenses de casa, mas deixou seus carros para trás, criando as condições para que as
mulheres aprendessem a dirigir. A possibilidade, entretanto, da apropriação do automóvel
pelas mulheres teria sido vista com preocupação pelos homens, que temiam que, com a
liberdade conquistada, elas rejeitassem seus maridos, filhos e lares.
Corrobora o argumento de Berger à entrevista realizada com Tiago, ensino
fundamental. Afirmou que não sabia ler e escrever direito, mas que manusear o aplicativo
era fácil “é tudo o que é preciso hoje em dia, para ganhar dinheiro não precisa ler e escrever”.
Na infância, repetiu de ano muitas vezes até que desistiu de estudar. Apanhou muito do pai,
quando isso aconteceu. Não entendia o motivo, porque o pai, “um carrasco”, também não
sabia ler e escrever. Para Tiago o trabalho na Uber é o ideal. Nunca imaginou um trabalho tão
bom. Trabalha de domingo a domingo, com intervalos para participar dos aniversários das
filhas, acompanhar em emergências médicas e em algumas atividades nas férias escolares. Diz
que as meninas são o que o mantém “na linha”. Agradece a existência do aplicativo. Só
lamenta não poder passar mais tempo com as meninas.
35
BERGER, M. L. The Car's Impact on the American Family. In: M. Wachs & M. Crawfor (Eds.), The car and the
city: The built environment, and daily urban life. Detroit, MI: The University of Michigan Press, 1992, p. 57-74.
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Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano
Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região
VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
Tiago ― A única coisa ruim é que não posso passar tanto tempo com minhas
meninas que são tudo pra mim.
V.V.C Quem cuida delas?
Tiago ― minha esposa?!
V.V.C o tempo todo?
Tiago ― Não, porque elas vão pra escola.
V.V.C Sua esposa trabalha fora de casa?
Tiago ― Não, ela tá desempregada faz um tempo.
V.V.C Ela dirige?
Tiago ― Uber ou normal?
V.V.C os dois
Tiago ― Só sem ser Uber.
V.V.C Ela pensou em ser Uber também?
Tiago ― Ela tem que cuidar das crianças e da casa. Não dá.
V.V.C ― Pensaram em revezar, para você ficar mais tempo com as crianças?
Um dia você, um dia ela, dirigindo?
Tiago o. Acho que ela prefere cuidar das crianças. E eu dirijo melhor.
(Tiago, 07 de agosto de 2018)
A história de Tiago nos remete à clássica questão da divisão de tarefas entre homens
e mulheres no que se refere ao cuidado dos filhos e da casa, em especial aos papéis sociais de
gênero que se esperam ser desempenhados por mães e pais. A esposa quem realizava essas
tarefas domésticas e de cuidado, pois o entrevistado não permitia que o contrário
acontecesse.
De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)
36
, 40% dos
lares brasileiros são chefiados por mulheres, sendo que, entre 2005 e 2015, o número de
famílias compostas por mães solo subiu de 10,5 milhões para 11,6 milhões, segundo dados do
IBGE, divulgados em 2017. Embora o trabalho de cuidado diga respeito a toda sociedade, tem
sido realizado precipuamente por mulheres. A elas tem sido confiado o encargo do cuidado
domiciliar e em geral. O cuidado remete-nos à questão de gênero à medida que essa atividade
está profundamente naturalizada. As mulheres são responsabilizadas e se responsabilizam
pela execução cotidiana e permanente do trabalho doméstico e de cuidados.
Não se trata de um dom natural, um talento especial ou um fenômeno biológico para
essas atribuições. Há, sim, uma construção social que produz e reproduz, a partir de valores e
36
Informação disponível em: http://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_chefia_familia.html.
15
Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano
Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região
VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
convenções tradicionais de gênero, a associação entre mulheres e cuidado, ao mesmo tempo
que desassocia dos homens estas mesmas habilidades. O papel da mulher a sociedade é
ancorado na ideia de que esta é responsável pelos cuidados a serem dispensados à sua família,
fundado na ideia do amor maternal
37
.
Outra entrevistada da pesquisa, Michelly, 31 anos, ensino médio, sustenta e cuida
sozinha de seus dois filhos, uma menina de 5 anos e um menino de 13 anos. Alega que os pais
de seus filhos, não a “ajuda em nada”. O pai do seu filho, nunca foi de trabalhar, e é “metido
com bandidagem”, portanto, “é melhor estar distante mesmo e não ter nada dele”. Quanto
ao pai de sua filha, existe uma ação de alimentos para a menor, no entanto, como ele é
motoboy de entrega e não tem carteira assinada, mentiu para o juiz, dizendo receber muito
menos do que na realidade recebe, e por ter outros filhos, a pensão alimentícia foi fixada em
200 reais. Questiona a entrevistada: “O que eu faço com 200 reais? É o preço da perua que
leva minha filha pra creche, que estou devendo faz 3 meses e o moço disse que vai me pôr na
justiça. Isso tudo por causa daquele egoísta, que ganha muito mais do que eu fazendo as
entregas. Fácil né? Ele larga todas as crianças dele (4 filhos) com as mães, fica lá trabalhando
e depois vai beber cerveja no bar”. A primeira entrevistada, Solange, retoma a temática do
cuidado:
V.V.C- e de dia? Você tem outro trabalho, outra profissão?
Solange- sim, eu tenho a profissão mais difícil do mundo: sou mãe. Eu coloco
minha filha pra dormir, ela fica com a minha mãe e eu venho dirigir. Tô
exausta porque acordo cedo com a bebê. Fico cuidando dela durante o dia,
daí ela dorme e eu venho até o aguentar mais. Às vezes durante o dia eu
dirijo também, daí ela fica com a minha mãe pra eu ganhar dinheiro pra
gente. Daqui a pouco, ela vai ter idade pra ir pra creche e eu vou poder dirigir
mais durante o dia pra ganhar mais dinheiro. A gente precisa.
V.V.C- quando sua bebê nasceu, você trabalhava?
Solange- não, eu estava desempregada. Por sorte a Uber chegou quando ela
estava com 2 meses, daí eu já pude fazer uma graninha, porque com criança
a gente gasta muito mais dinheiro.
V.V.C- Então você voltou a trabalhar com sua filha só com 2 meses?
Solange- isso. (Solange, 29 de julho de 2018)
37
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
16
Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano
Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região
VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
Solange nem sequer cita a ausência de uma licença maternidade. Tornou-se mãe
quando estava desempregada e sofreu as consequências da desproteção social à qual estava
submetida. Na fala de quem está desempregada é demonstrado que pior do que não ter uma
licença maternidade, um tempo para cuidar e amamentar a sua filha sendo remunerada, é
não ter o que comer. Hoje, Solange se vale da flexibilidade como estratégia para ficar mais
próxima da filha, mas não só isso; para poder ficar próxima à filha tendo algum tipo de
remuneração, o mínimo patamar civilizatório.
O interessante a se extrair da história da entrevistada é notar a problematização que
é feita, sobre tempo social, e da ideia de conciliação entre trabalho e família. A forma de
desenvolvimento capitalista produziu historicamente uma vida cotidiana em que o tempo
social que conta, ou seja, o tempo de trabalho que tem valor, é aquele empregado na
produção de mercadoria, gerador de mais-valia. Há o discurso de que o trabalho reprodutivo
não seria importante para a produção capitalista, pelo fato de não produzir mercadorias e não
gerar lucros
38
. Na sequência da entrevista a entrevistada aborda o seu tempo e metas de
produção:
V.V.C- a maioria dos motoristas que entrevistei trabalham com metas diárias,
você também?
Solange-não dá , precisa trabalhar mais de dez horas por dia pra ter uma
meta que nem eles, e eu não tenho dez horas por dia. Eu sou mãe por 24
horas, mas por dez minha filha dorme com a minha mãe. Eu tenho essas dez
então, mas daí eu nunca dormiria, não comeria, e se a bebê acorda chorando
também eu tenho que correr. Ontem mesmo ela estava com cólica, aí o
pude sair pra rua pra dirigir. É assim, ainda bem que minha mãe fica com ela
pra eu poder dirigir, ainda bem que toda mãe tem uma mãe né?
V.V.C- e quem não tem?
Solange- Ou tem dinheiro pra uma babá, ou tá perdida. Não sei, tem umas
que tem sogra também? Sim, por que homem, né? Melhor eu nem começar
a falar sobre isso, porque senão a gente vai chegar em um lugar que é melhor
o. (Solange, 29 de julho de 2018)
A entrevistada tem a consciência que não conseguiria atingir a mesma meta de um
homem por ter que cuidar da filha. No caso desses(as) trabalhadores(as), estamos diante do
38
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
17
Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano
Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região
VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
“salário”
39
por unidade de obra. Esse modelo remuneratório reedita uma forma antiga de
pagamento: o salário por peça que, a despeito de não ser hegemônico na sociedade
contemporânea, seguiu existindo em alguns ramos produtivos em coexistência com o salário
por tempo. A gestão por plataformas ao automatizar o controle, permite a proliferação do
trabalho por peça
40
.
Em “O Capital”
41
pode-se encontrar pistas preciosas para entender tanto a dialética do
trabalho, quanto da problematização do salário por peça, a remuneração do(a) trabalhador(a)
depende não de sua jornada, mas de sua produção. No século XIX, Marx já assinalava a
tendência a uma opacidade ainda maior das relações entre capital e trabalho através desse
tipo de pagamento.
A passagem do salário por tempo para o salário por peça materializa uma transferência
do controle sobre o trabalho da gerência do tempo e produtividade para o(a) próprio(a)
trabalhador(a). A variação na remuneração é então de inteira responsabilidade do(a)
trabalhador(a), quanto melhor seu desempenho e quanto mais trabalhar, maior é a
remuneração. Marx explica que ao remunerar não pelo tempo, mas pela quantidade
produzida, favorece um aumento tanto da extensão do tempo de trabalho como de sua
intensidade:
[...] Dado o salário por peça, é naturalmente do interesse pessoal do
trabalhador aplicar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o
que facilita ao capitalista elevar o grau normal de intensidade. Do mesmo
modo, é interesse pessoal do trabalhador prolongar a jornada de trabalho,
pois com isso sobe seu salário diário ou semanal
42
.
39
Trata-se de remuneração de valor variável encontrada sob o manto protetor do que estabelecido no art. 7.º,
VII, da Constituição Federal de 1988: "garantia de salário nunca inferior ao mínimo para aqueles que percebem
remuneração variável". No mesmo sentido a CLT que faz a previsão do salário por peça CLT, Art. 78 “Quando o
salário for ajustado por empreitada, ou convencionado por tarefa ou peça, será garantida ao trabalhador uma
remuneração diária nunca inferior à do salário-mínimo por dia normal da região, zona ou subzona.” Embora a
Constituição e CLT façam essa previsão, o salário-mínimo não se verifica no caso em tela.
40
VIDIGAL, Viviane. Game Over: a gestão gamificada do trabalho. MovimentAção, [S.l.], v. 8, n. 14, p. 44-64, ago.
2021.
41
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política o processo de circulação do capital. Livro Primeiro, v. 1,
t. 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
42
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política o processo de circulação do capital. Livro Primeiro, v. 1,
t. 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 141.
18
Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano
Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região
VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
Essa forma de vinculação subordina totalmente o trabalho à lógica da empresa, ficando
o(a) trabalhador disponível integralmente para atender às demandas que podem ocorrer a
qualquer dia/horário, inclusive no período noturno e aos fins de semana. Essa lógica de
contratação promove um borramento entre as fronteiras do tempo do trabalho e do não
trabalho, dado que mulheres e homens poderão ser exigidos em tempo integral.
Na proposta deste artigo, é essencial observarmos o fato de que o trabalho
plataformizado está associado ao(a) trabalhador(a) integralmente disponível
43
para o
trabalho, à conformação do(a) trabalhador(a) just-in-time
44
, isto é, um(a) trabalhador(a) sob
demanda
45
. A exigência de performance atendendo aos interesses do capital cujo propósito
natural é o de funcionar como impulso para mais acumulação produz um(a) trabalhador(a)
ideal que não para nunca: aquele(a) sempre disposto(a) e disponível
46
.
Para o capital o(a) melhor trabalhador(a) será aquele(a) que mais conseguir anular
sua condição humana enquanto trabalha: que não for tantas vezes ao banheiro, não adoecer,
não conversar com os colegas, não manifestar queixas, não faltar ao trabalho, não comentar
problemas pessoais”
47
. Trata-se de um sujeito que não engravida e não cuida de nada, nem
de ninguém. Notamos que a disponibilidade de mais de doze horas por dia, de domingo a
domingo, não pode ser performada em iguais condições por todos, como por exemplo, por
43
Richard Sennett já se referia à ideia de disponibilidade integral em A corrosão do caráter, ao relatar a história
de Rico, um trabalhador que atuava em contrato flexível, fazendo contraposição ao taylorista-fordista. SENNETT,
Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoas do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record,
2003.
44
Pode ser traduzido livremente como na hora certa ou no momento exato. Concebido no Japão, em
oposição ao just-in-case fordista, tem se difundido pelo mundo nas últimas décadas, juntamente com outros
aspectos do Toyotismo. “Just-in-time significa que, em um processo de fluxo, as partes corretas necessárias à
montagem alcançam a linha de montagem no momento em que são necessárias e somente na quantidade
necessária. Uma empresa que estabeleça esse fluxo integralmente pode chegar ao estoque zeroOHNO, Taiichi.
O Sistema Toyota de Produção: além da produção em larga escala. Porto Alegre: Bookman, 1997, p. 26.
45
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Breque dos Apps é um freio coletivo na uberização e na degradação e exploração do
trabalho. [Entrevista cedida a] Patricia Fachin. Revista IHU on-line, 05 de ago. 2020. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/601524-breque-dos-apps-e-um-freio-coletivo-na-
uberizacao-e-na-degradacao-e-exploracao-do-trabalho-entrevista-especial-com-ludmila-abilio. Acesso em: 20
de ago. 2020.
46
VIDIGAL, Viviane. Ininterrupto e Infinito: o trabalho no capitalismo de plataforma. Revista Brasileira de Direito
Social, v.4, n.1, 2021.
47
SEVERO, Valdete Souto. Manual da reforma trabalhista: pontos e contrapontos / Valdete Souto Severo, Jorge
Luiz Souto Maior; organizadores Afonso Paciléo Neto, Sarah Hakim; prefácio Lívio Enescu. São Paulo: Sensus,
2017.
19
Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano
Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região
VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
mães com filhos pequenos considerando-se que as escolas têm funcionamento em horário
comercial.
A entrevista com Solange, que estava sendo realizada durante o percurso, foi
interrompida pois, recebeu em seu outro aparelho celular, uma ligação de sua mãe alertando-
a que sua filha estava com um pouco de febre, desculpou-se com a pesquisadora por acelerar,
indo de encontro a sua filha. Nesse ponto, lembramos não apenas das jornadas duplas as quais
as mulheres estão submetidas, conciliando os denominados trabalhos produtivo e
reprodutivo, como também, no caso, a entrevistada é exemplar do que Monique Haicault
chama de carga mental
48
. Carrega consigo dois celulares-um para o trabalho e outro
particular. Está presente fisicamente no carro e atenta ao trânsito, mas também está atenta
às possíveis chamadas de sua vida, à espera, sem descanso, relevando nunca se desligar do
trabalho emocional.
As interrupções são o contrário do que se espera no trabalho plataformizado:
disponibilidade total. O tempo social da reprodução é o integralmente disponível, o tempo
do trabalho plataformizado, também. Chamadas que quando recebidas síncronas, não
poderão ser atendidas simultaneamente. A disponibilidade total para atender à chamada do
capital, é masculina. Nesse sentido, o trabalhador ideal dessa configuração trabalhista, dada
a divisão sexual do trabalho em nossa sociedade, não é gênero neutro.
3. O algoritmo e o feminino
As plataformas tecnológicas são “alimentadas por dados, automatizadas e organizadas
por meio de algoritmos”
49
. O gerenciamento algorítmico pode ser definido como supervisão,
governança e práticas de controle conduzidas por algoritmos sobre trabalhadores(as)
50
.
48
Monique Haicault traz à tona a dimensão emocional que o trabalho doméstico envolve, o qual pode ocasionar
transtornos mentais, dado o seu nível de exigência e dedicação. A presença constante exigida pelas atividades
cotidianas, demarcadas pela repetição, é um exemplo disso. Esse custo emocional, que se reflete também na
dimensão material, é chamado de ‘carga mental’. Para mais informações, vide HAICAULT, Monique. La gestion
ordinaire de la vie em deux. Paris, Sociologie du Travail, nº 3, 1984.
49
VAN DIJCK, J.; POELL, T.; DE WAAL, M. The Platform Society. New York: Oxford, 2018, p.9.
50
MÖHLMANN, M. and ZALMANSON, L. Hands on the wheel: Navigating algorithmic management and Uber
drivers' autonomy, International Conference on Information Systems (ICIS 2017), 10-13 de dez. 2017, Seoul,
South Korea.
20
Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano
Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região
VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
Segundo Kleinberg “pode-se pensar informalmente um algoritmo como um passo a passo, um
conjunto de instruções, expressado em uma linguagem estilizada, para a resolução de um
problema”
51
. Ele transforma “dados em resultados desejados
52
.
Os algoritmos, como qualquer outra tecnologia, são produzidos a partir do trabalho
humano para empresas de tecnologia e ao mesmo tempo, “também são resultados das
interações das pessoas comuns com esses algoritmos”
53
. São criados pelas empresas que
constroem e determinam as regras do negócio. Ele controla a relação laboral, aparece como
executor da vontade e valores das empresas, um intermediário entre a plataforma e o
trabalhador. Em tempos de arquitetura da informação
54
, (e o controle está aí, na maneira
como a informação é produzida e manipulada pela empresa), principalmente aquele que está
sendo controlado, não enxerga a pessoa física do controlador, podendo, portanto,
compreender a técnica como neutra.
Mazzotti
55
alerta que o algoritmo é considerado invisível, apesar de integrado em
diversos aspectos do cotidiano das pessoas, torna-se uma caixa preta e é afastado do
escrutínio do público, passando a ser encarado como um elemento natural. Isso gera ar de
falsa liberdade, de falsa autonomia, ou melhor de liberdade controlada, necessários nos dias
atuais. Na passagem da sociedade da disciplina de Foucault para a sociedade do controle de
Deleuze, foi preciso criar um ambiente sedutor de liberdade, um meio positivo
56
para engajar
os(as) trabalhadores(as).
51
KLEINBERG, Jon. The Mathematics of Algorithm Design. Princeton Companion to Mathematics, Princeton
Univ. Press, 2008. Disponível em: https://www.cs.cornell.edu/home/kleinber/pcm.pdf
. Acesso em: 08 de nov.
2017.
52
GILLESPIE, T. A relevância dos algoritmos. Parágrafo, v. 6, n. 1, p. 97, jan./abr. 2018.
53
GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: características e alternativas. In: Uberização, trabalho digital e
Indústria 4.0, Ricardo Antunes (org.). São Paulo: Boitempo, 2020.
54
Saul Wurman definiu Arquitetura da Informação como sendo a ciência e a arte de criar instruções para espaços
organizados. WURMAN, R. S. Information architects. 2.ed. Lakewood: Watson-Guptill Pubns, 1997.
55
MAZZOTTI, Massimo. Algorithmic life. In: PRIDMORE-BROWN, Michele; CROCKETT, Julien. The digital
revolution: debating the promises and perils of the Internet, automation, and algorithmic lives in the last years
of the Obama Administration. Los Angeles: Los Angeles Review of Books: 2017.
56
CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende. Desafio do Direito do Trabalho é limitar o poder do empregador-
nuvem. Conjur, 16 de fev. 2017. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2017-fev-16/desafio-direito-
trabalho-limitar-poder-empregador-nuvem. Acesso em: 10 de set. 2021.
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Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região
VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
Portanto, é necessário o exercício de ressaltar que o algoritmo de neutro não tem
nada. Para afastar o que Taina Bucher chama de imaginário algorítmico
57
de neutralidade e
objetividade. Pois, na verdade, trata-se de opinião embutida em matemática”
58
, como
escreveu Cathy O’Neil, matemática norte americana. Todo algoritmo, em alguma medida,
carrega em si os valores e as opiniões de quem o construiu, num processo de reprodução de
certos comportamentos, dentre eles, o sexismo.
Considerando a construção do artefato tecnológico pode se revelar a discriminação
por gênero no controle e gerenciamento do trabalho plataformizado, conforme Flávia
Pereira
59
: [...] o critério de programação do algoritmo é feito por um humano, geralmente
um corpo branco masculino [...]. Esclarecendo que [...] não são neutros, incorpóreos ou
etéreos, são movidos por relações de poder e são extraídos por processos capitalistas
coloniais [...] mantendo a subalternidade histórica dos mesmos corpos trabalhadores [...]”.
A figura abaixo traz um retrato de uma mãe transitando na contramão das ruas e dos
direitos. A história de Michelly, uma mulher, jovem, negra, periférica articula questões de
raça, classe, gênero e juventude. Se tornou entregadora na atividade mais precária, a de
bicicleta, porque não tinha mais condições de investir em um novo carro ou em uma
motocicleta.
57
BUCHER, T. The Algorithmic Imaginary: exploring the ordinary affects of Facebook algorithms. Information,
Communication & Society, v. 20, n. 1, 2017, p. 30-44.
58
O'NEIL, Cathy. Weapons of Math Destruction: How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy.
Crown Books, 2016.
59
PEREIRA, Flávia Souza Máximo. Subordinação, sujeição e subalternidade no trabalho e colonialidade na data
driven economy. Palestra proferida no Congresso Internacional AMAT LABORTECH 2020 Segundo dia De
01:05:00 a 01:25:50, 17 de mai. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NUjhvQCIgGI
. Acesso
em 28 de jun. 2020.
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VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
Figura 1- A plataformização transita na contramão dos direitos
Fonte: A autora
60
.
Anos antes da fotografia do artigo ser capturada, a entrevistada Michelly adoeceu
dirigindo para aplicativos. Nascida e domiciliada em Campinas/SP, foi demitida em 2015, de
um restaurante onde era empregada e exercia a função de caixa. Este, fora seu último
contrato de trabalho celetista. Em dezembro do mesmo ano, começou a trabalhar como
motorista Uber. Com menos de um ano dirigindo, foi diagnosticada com síndrome do pânico,
gerada pelo estresse excessivo que passava nas ruas e principalmente pelo medo que tinha
de sofrer violência sexual, ao transportar passageiros homens.
A doença ocupacional obrigou a entrevistada a ficar parada por algumas semanas,
“tinha crises fortes, tremia, passava muito mal, achava que iria morrer”. Os médicos a
aconselharam a parar de dirigir, ou ao menos diminuir o tempo de trabalho se quisesse
melhorar. Medicada por um psiquiatra, sob influência de remédios controlados, voltou a
rodar. No entanto, com as contas atrasadas, precisou trabalhar ainda mais horas por dia do
60
Reprodução autorizada de acordo com a legislação vigente.
23
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VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
que trabalhava anteriormente ao seu recesso forçado não remunerado. Mesmo dirigindo por
mais tempo- passou a trabalhar também aos domingos e no período noturno- não conseguia
sanar as dívidas. Então, em 2018, sofreu um acidente de trânsito. Perdeu o veículo usado que
havia comprado com “economias da vida toda”.
Sem carro e sem saúde, resolveu alugar uma bicicleta “que era muito mais barata”
para fazer entregas. Também, para melhorar sua saúde, acreditando ser um exercício físico
mais saudável e que a ajudaria nas crises de ansiedade e aliviar o estresse.
No entanto, lamentou que os restaurantes não a chamavam muito, pois preferem
homens, que “pedalam mais rápido”. A discriminação algorítmica que redistribuiu as melhores
corridas para os homens jovens por serem teoricamente mais rápidos é, na verdade, uma
exigência de performance do capital.
Nesse sentido, o gerenciamento algorítmico se apropria, organiza e reproduz um
conjunto de desigualdades já existentes. Se o algoritmo aprende e apreende dados existentes,
o sistema poderia distribuir mais passageiras para motoristas mulheres de modo a reduzir
doenças laborais pelo estresse causado por medo de violências sexuais, como o estupro, por
exemplo. No entanto, o que se vê são respostas algorítmicas aos anseios do capital em
detrimento da condição humana. Respostas de uma “política algorítmica”
61
que possui viés
de gênero.
4. Mulher Mulheres
62
O mundo do trabalho é costurado pela avaliação que garante a qualidade do serviço.
Além do algoritmo, as empresas plataformas dependem de mecanismos de "reputação
digital", seja para orientar a seleção dos(as) trabalhadores(as) ou realizar o controle de
qualidade do serviço. A avaliação baseada no feedback dos clientes constitui uma ferramenta
61
BEER, David. The social power of algorithms. Information, Communication & Society, v. 20, n. 1, 2017.
62
Inspirado no livro por Suely Kofes Mulher, mulheres identidade, diferença e desigualdade na relação entre
patroas e empregadas domésticas”, no qual analisa a relação entre patroas e empregadas domésticas, discutindo
a conexão entre identidade, diferença e desigualdade. KOFES, S. Mulher, mulheres identidade, diferença e
desigualdade na relação entre patroas e empregadas domésticas. Campinas, Editora da Unicamp, 2001.
24
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VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
de que dispõe as plataformas para manter seus(suas) trabalhadores(as) sob constante
controle e estrita submissão aos padrões impostos por elas.
Entende Abílio
63
que o controle sobre o trabalho é transferido para a multidão de
consumidores, que avaliam os profissionais a cada serviço demandado. A certificação sobre o
trabalho vem agora da esfera do consumo, por meio dessa espécie de gerente coletivo que
fiscaliza permanentemente o trabalhador.
A avaliação está multiplicada e dispersa em várias instituições de controle, vários
vigias, como já previa Foucault
64
. Essa avaliação dos gerentes consumidores é baseada no
valor humano, pautada em nenhum juízo menos rígido do que a maleabilidade dos humores,
gostos e preferências, já que não há a fixação de um conjunto objetivo de critérios a serem
observados
65
.
Os relatos dos(as) entrevistados(as) nos mostram que na relação trabalhador(a)/
consumidor(a), há interação de classes e grupos desiguais. Visualizar os padrões que
aparecem nos discursos e práticas sociais, revelando a marginalização que as mulheres sofrem
nesse espaço, auxilia na compreensão das diferenças e desigualdades de gênero.
A entrevistada Michelly, a despeito de toda sua narrativa problemática trabalhando
em plataformas, afirmou que a sua situação nunca foi das piores, ao se comparar com sua
prima entregadora, que tem “a pele mais escura que a minha, que ainda sou meio clarinha,
recebia olhares desconfiados do porteiro e chegou a ser abordada pela polícia”. Esta fala da
entrevistada denuncia que as vivências dessas mulheres são, naturalmente, heterogêneas.
O trabalho plataformizado, portanto, torna-se um espaço privilegiado para se pensar
na interseccionalidade
66
dos marcadores de diferença e a produção de hierarquias entre os
eixos de opressão de gênero, de raça e de classe. A geometria variável dessa interação é que
63
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Passa palavra, 2017. Disponível
em: http://passapalavra.info/2017/02/110685
. Acesso em: 20 de abr. 2017.
64
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 42. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2018.
65
CASTRO, Viviane Vidigal. As ilusões da uberização: um estudo à luz da experiência de motoristas Uber.
Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, 2020. Disponível em:
http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/343227/1/Castro_VivianeVidigalDe_M.pdf
. Acesso em:
10 de set. 2021.
70
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial
Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002.
25
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VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
condicionará as experiências das diversas mulheres, sendo imprescindível que todos esses
aspectos sejam levados em consideração na compreensão do trabalho plataformizado.
A entrevistada Patrícia, 45, ensino médio, explica que começou a dirigir pela Uber por
entender ser uma boa oportunidade a Uber é uma boa, o problema é que só o é cil como
imaginávamos por ter que trabalhar muitas horas, expostos a riscos. Eu mesma fui até
assediada dentro do meu carro, tenho boletim de ocorrência e tudo. Mas enfim, precisamos
né.” Na sequência, a entrevistada detalhou o assédio que sofreu bom, foi um passageiro que
chamou pelo aplicativo e durante o trajeto colocou seu órgão sexual para fora e tirou fotos
dentro do carro. Quando escutei o flash, olhei para o lado e gritei para ele se retirar
imediatamente do meu veículo.
Alega que apesar de ter sido orientada por sua advogada, não entrou com um processo
pois se diz cansada, na verdade já estou cansada sabe, muitas coisas que sei que são de
direito a gente acaba abrindo mão. Se sente vulnerável dirigindo para o público por ser
mulher, já que seu marido, também motorista sofreu apenas agressões verbais por parte dos
passageiros que não entendem que não somos obrigados a ter cadeirinha, a ter grande
quantidade de troco, que não podemos parar em local proibido, que não podemos levar
pacote ou excesso de passageiros, só essas situações de dia a dia dos uberes.
Esse sentimento de vulnerabilidade é compartilhado por outras mulheres motoristas.
Há inúmeros relatos de assédio sexual e moral nos grupos de Facebook. Observamos que uma
das estratégias que elas usam para não serem assediadas é ignorar sua feminilidade, se
colocando como neutras/masculinas. Há o apagamento da imagem feminina, ao fazer coque
no cabelo, não passar maquiagem e usar roupas que classificam como “vestir mal”.
Verificamos o desligamento da chave de gênero por meio da corporeidade para evitar o
assédio quando em um ambiente masculinizado. Apagam gênero para não sofrer preconceito
e para não serem lembradas como mulher.
Uma das entregadoras entrevistada pela pesquisa, Fernanda, era a única mulher entre
aproximadamente cinquenta motociclistas, participando de um movimento paredista em
julho de 2020, no município de Campinas/SP.
26
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A construção social das masculinidades pode ser um fator relevante na determinação
das práticas de motociclistas em geral. A relação imbricada do motociclismo e das
masculinidades é configurada não apenas objetivamente, mas também como um espaço
subjetivo masculinizado. Não parece ser por acaso que os elementos constituintes do
estereótipo negativo dos motoboys descrito por Diniz et al.
67
como a "imprudência",
"ousadia", "irresponsabilidade" e o "prazer por fortes emoções" coincidam com valores e
comportamentos historicamente atribuídos ao masculino
68
. Ao ser questionada como se
sentia sendo a única mulher entre tantos homens, a entrevistada disse que também tinha sua
namorada- apesar de ela não estar presente naquele momento- e que ambas eram bem
aceitas por serem “lésbicas, doidonas e sem medo de nada”. Neste caso, o apagamento da
feminilidade para não ser lembrada como mulher, aparece como estratégia para aceitação e
pertencimento aos laços de irmandade (brotherhood) e aos elos de cooperação estabelecidos
entre homens.
A entrevistada Michelly, depois de ser motorista de Uber e entregadora por aplicativo,
passou a trabalhar como manicure via aplicativo, um trabalho que sempre fez “como bico”,
na atividade que alega amar. Sente-se “muito mais segura”, trabalhando para outras
mulheres, “um trabalho de mulher para mulher”, pois quando era motorista de Uber, era
constantemente assediada. Fator que, com a ajuda de profissionais especializados, tem a
compreensão ter colaborado para o desencadeamento da síndrome do pânico, “eu não tinha
tanto medo de ser assaltada, meu medo mesmo era ser estuprada”. Trabalhando sem medo,
é mais fácil não ficar doente por stress.
Ao analisarmos a imbricação classe, violência, trabalho, podemos verificar o
deslocamento da noção de risco nas profissões ao incorporarmos viés de gênero à análise. A
pesquisa realizada por Souza
69
perguntou sobre a forma como os homens e mulheres se
67
DINIZ, E. P. H., ASSUNÇÃO, A. A., & LIMA, F. P. A. Prevenção de acidentes: O reconhecimento das estratégias
operatórias dos motociclistas profissionais como base para a negociação de acordo coletivo. Ciência & Saúde
Coletiva, 10(4), 2005, p. 905-916.
68
KIMMEL, M. S. A produção simultânea de masculinidades hegemônicas e subalternas. Horizontes
Antropológicos, 4(9), 1998, p. 103-117.
69
SOUZA, L. C. G. As representações sociais do carro, da velocidade e do risco em jovens. Dissertação de
mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro/RJ, Brasil, 2001.
27
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apropriam do veículo, como o significam e que usos atribuem a ele, concluindo que o
comportamento de risco no trânsito é mais bem valorizado e consequentemente mais
frequente em homens. Michelly demonstrou se sentir mais segura exercendo a atividade de
manicure “de mulher para mulher”, um trabalho que compreende ser feminino, reportando-
se primeiro ao princípio da divisão sexual do trabalho (separação). Ainda, para ela, era mais
seguro trafegar em uma bicicleta com sua filha, entre os carros, do que transitar dentro de
um carro com um passageiro homem. Um paradoxo que ao mesmo tempo que cria risco, cria
segurança. Apresenta o perigo e apresenta o conforto, pois se sente mais protegida enquanto
mulher.
Trabalhar de mulher para mulher, como é o caso das manicures não se traduz
necessariamente em tranquilidade no ambiente laboral, quando existe a avaliação realizada
pelas consumidoras. As trabalhadoras relataram medo de serem reportadas ao aplicativo por
clientes insatisfeitas. Sentem-se pressionadas por clientes que ameaçam tirar fotos das unhas
para enviar para a empresa, se não obtiverem o resultado desejado. Além de vivenciarem o
stress de acontecer algum imprevisto que as impossibilitem de atender. Tendo como
consequência multas, bloqueios ou desligamentos, sem chances de fornecer justificativas,
pois o suporte da empresa, nem sempre responde aos e-mails, ou bloqueiam o contato da
trabalhadora no grupo de “Whatsapp”.
Todas as “artistas” passam por testes práticos antes de serem habilitadas no sistema.
Uma vez que o cadastro é aceito, a artista passa por um workshop onde são transmitidas todas
as normas e regras da empresa, incluindo a política de avaliação. As trabalhadoras são
avaliadas por pseudo clientes que têm como objetivo observar/espionar o desempenho e o
comportamento da manicure. Pensando na possibilidade do estabelecimento de um vínculo
emocional entre mulher/mulheres- manicure/clientes, a empresa criou estratégias para não
ocorrer a fidelização entre elas. A partir da criação de vínculo emocional, a cliente poderia se
transformar em fixa, o que tornaria dispensável a intermediação pelo aplicativo. Elencamos
algumas ferramentas de controle encontrados na pesquisa: 1) Proibição de pegar/passar o
número de telefone ou dados pessoais para os clientes. 2) Bloqueio/desligamento da
trabalhadora por descumprimento da regra “1” se perceber que a cliente usou o serviço
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Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
algumas vezes e parou, concluindo-se que a manicure estava atendendo por fora. 3) Aumento
no preço de um segundo serviço de determinada artista”, para desestimular a repetição de
pedido pela mesma profissional. 4) Código de conduta que não permite a conversa durante o
trabalho.
As medidas tomadas pela empresa desconfiguram a essência do trabalho das
manicures. Ao pesquisar esse trabalho, Juliana Oliveira, conclui que o que está posto nesse
exigido silêncio é, na verdade, a ausência de percepção da pessoa da manicure. “Embora haja
duas pessoas ali, há somente uma subjetividade reconhecida; a outra resta invisível.” A
despeito da força de trabalho encarnada no corpo da manicure estar visível e reconhecida. “O
que não se vê - e parece não se querer ver é a subjetividade da manicura, isto é, a existência
de uma pessoa que sente, que se deixou afetar”
70
.
Trata-se de um trabalho relacional que contraria a lógica da descartabilidade do
trabalho plataformizado. Nesse sentido, com a desconstrução da ideia da manicure calcada
no trabalho emocional, pode se pensar que essa atividade via plataforma não perdurará. No
entanto, há de se considerar a sucumbência a esse processo de invisibilização em troca da
sobrevivência material imediata.
Para além da negociação de suas visibilidades, pode-se concluir, por todas as narrativas
encontradas na pesquisa, que no modelo de trabalho plataformizado, os(as) trabalhadores(as)
para ter uma renda, deixam a sua saúde e segurança em segundo plano. Trata-se de uma
lógica perversa na qual entram em jogo, com pesos diferenciados e não raro se contrapondo,
a sobrevivência material imediata e a preservação da saúde.
5. Resistência
Em decorrência das condições em que o trabalho é realizado pelos(as)
trabalhadores(as) plataformizados(as), este é tratado por muitos autores como sinônimo de
70
OLIVEIRA, Juliana Andrade. Fazendo a vida fazendo unhas: uma análise sociológica do trabalho de manicure.
Tese (Doutorado em Sociologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2014. doi:10.11606/T.8.2014.tde-05032015-104355. Acesso em: 11 de fev. 2020.
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trabalho precário. Na luta contra a precarização
71
se revela importante a organização dos(as)
trabalhadores(as). Pierre Dardot e Christian Laval pontuam que acirramento da racionalidade
neoliberal submete o(a) trabalhador(a) a um regime de concorrência em todos os níveis,
tornando a ação coletiva mais difícil. “As formas de gestão na empresa, o desemprego e a
precariedade, a dívida e avaliação, são poderosas alavancas de concorrência interindividual e
definem novos modos de subjetivação.
72
Seria possível acrescentar às análises dos autores sobre a ausência de um espírito de
coletividade na classe trabalhadora contemporânea o discurso da empregabilidade, que
desloca o eixo da responsabilidade pela geração de oportunidades de trabalho da sociedade
para o indivíduo, por intermédio da meritocracia. Um discurso de corte neoliberal, explicado
por Byung-Chul Han da seguinte forma: “o existe um oponente, um inimigo, que oprime a
liberdade diante do qual a resistência era possível. (...)Também a luta de classes se torna uma
luta interna consigo mesmo: o que fracassa culpa a si mesmo e se envergonha. A pessoa
questiona-se a si mesma, não a sociedade
73
. Nesse sentido, cria-se um alumbramento de que
o sucesso na profissão e a conquista de direitos trabalhistas dependem de habilidades
pessoais e não da luta classista.
No entanto, a crise move as peças no tabuleiro da consciência de classe
74
. No dia 01
de julho de 2020, milhares de entregadores de aplicativo participaram da paralisação nacional
em protesto por direitos trabalhistas, demandando maior garantia de segurança pelas
68
Precarização como processo, “um modo de reposição sócio-histórica da precariedade. Se a precariedade é
uma condição, a precarização é um processo que possui uma irremediável dimensão histórica determinada pela
luta de classes e pela correlação de forças políticas entre capital e trabalho. ALVES, Giovanni. Dimensões da
reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. 2. ed. Londrina: Práxis; Bauru: Canal 6, 2007, p.
114.
72
DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora
Boitempo, 2016, p. 6.
73
HAN, Byung-Chul. Por que hoje a revolução não é possível? El País, 3 out. 2014. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/22/opinion/1411396771_691913.html.
Acesso em: 24 de jun. 2019.
74
HIRATA, H.; KERGOAT, D. A Classe operária tem dois sexos. Revista Estudos Feministas. Rio de Janeiro, v.2, n.3,
1994.
30
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empresas e diminuição da taxa de corrida descontada. O contexto pandêmico agudizou a
precariedade desse trabalho
75
.
Em São Paulo, entregadores se reuniram estrategicamente em frente ao Tribunal
Regional do Trabalho (TRT), antes de seguirem para a Avenida Paulista. Imagens mostram que
os trabalhadores conseguiram fechar uma das vias da rua durante a paralisação. As cenas
transmitidas em telejornais, circulando em redes sociais, são de homens lutando por seus
direitos.
Figura 2- Breque dos App
Fonte: Esquerda diário
76
.
Há alguém “fora do tempo, ou ao menos, fora do acontecimento”
77
. Nesse caso, a
ausência/presença ínfima de mulheres nessas imagens, poderia ser explicada em razão da
atividade de entrega ser realizada por 97%
78
de homens. Na resistência, qual a história que
as mulheres constroem para si em que greves se engajam, como se articulam? Como as
trabalhadoras negociam sua visibilidade e criam estratégias? A sociedade reconhece nas
trabalhadoras uma força a ser considerada?
75
Abílio, L. C., Almeida, P. F. de, Amorim, H., Cardoso, A. C. M., Fonseca, V. P. da, Kalil, R. B., & Machado, S.
(2020). Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a COVID-19. Revista Jurídica
Trabalho E Desenvolvimento Humano, 3. https://doi.org/10.33239/rjtdh.v.74
76
A foto pode ser encontrada na notícia disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Neste-dia-25-
boicote-o-Ifood-Rappi-Ubereats-NAO-use-servicos-delivery-de-app.
77
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da História. Bauru: Edusc, 2005, p. 9.
78
A mão de obra é bem mais masculina do que a dos aplicativos de carona: segundo pesquisa realizada pela
Fundação Instituto Administração (FIA) e divulgada pela Associação Brasileira Online to Offline (ABO20), 97,4%
dos entregadores de aplicativos são homens com idade média de 29 anos.
31
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O Señoritas Courier, por exemplo, é um serviço de entregas de bicicleta realizado por
um coletivo de mulheres e lgbtqia+. O coletivo luta contra o estigma de que mulheres seriam
mais lentas sobre duas rodas, ao mesmo tempo em que apoia o empoderamento feminino e
transexual. As entregas cobrem toda a cidade de São Paulo e são feitas apenas com horário
marcado. A intenção é se tornar uma cooperativa, para que possam fazer esse trabalho em
um ambiente confortável. Em uma luta também contra o sistema algorítmico que consideram
exploratório. “A gente não trabalha por algoritmo, a gente trabalha ali, na unha mesmo. Tudo
muito transparente”
79
.
Não se descura que a pandemia visibilizou a centralidade e essencialidade da entrega,
desnudando a precariedade desse serviço. Entretanto, o trabalho plataformizado é espraiado
em diversas outras atividades. O quanto essa atividade específica foi visibilizada por sua
centralidade/essencialidade e o quanto foi, por ser atividade predominantemente masculina?
“Todo mundo que entrega sua força de trabalho é entregador”. É a frase e voz de Paulo
Lima, o Galo, que se tornou símbolo dos entregadores. "Gostaríamos, naturalmente, de
conhecer as instigadoras de greve”, desejou Michelle Perrot. “Mas a obscuridade, o
anonimato, o preconceito, as dissimulam mais ainda do que seus camaradas masculinos”
80
.
No dia da greve, a despeito de não terem circulado nas fotos divulgadas pelos meios de
comunicação, elas estavam lá. Conduzindo as bicicletas e as suas vidas. “Insuflando espaços
saturados de relações sociais”
81
atávicas masculinizadas e controladas. Fazendo seus
caminhos e produzindo fendas no tecido social.
O projeto político dos feminismos
82
se configura pela necessidade de tornar visíveis
práticas femininas que outrora estiveram silenciadas pelos mecanismos de exclusão
configurados nas narrativas masculinistas. Recuperando a história por Susan Besse, as
79
Aspas que trago do documentário “Entregue Como uma Garota”. Direção de Adriana Marmo, Luciana Cury,
George Queiroz. Produção de Luciana Cury. São Paulo: Bicicleteiros, 2020. (11min.). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=CJZnNz5g_i8
. Acesso em: 18 de out. 2020.
80
Aspas que trago de PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da História. Bauru: Edusc, 2005, p. 165.
81
IONTA, Marilda. Das amizades femininas e feministas. In: RAGO, Margareth; GALLO, Silvio (orgs). Michel
Foucault e as insurreições: É inútil revoltar-se? São Paulo: Intermeios, 2017, p. 380.
82
Hoje, são os feminismos (no plural) para se pensar na diversidade constitutiva das mulheres. Por Angela Davis,
Patricia Hill Collins, Bell Hooks, Kimberlé Crenshaw, Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Gatra Kilomba, Betty Friedan,
María Lugones, Yuderkys Espinosa Miñoso, Karina Ochoa, Gladys Tzul Tzul, Diana Gómez Correal, entre outras.
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VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
“feministas de classe média relutavam em cruzar a fronteira de classe” e, por essa razão, “as
operárias tinham poucos motivos para aderir ao movimento feminista”
83
. No processo de
uberização do trabalho a precariedade subiu para a classe média e, sendo a classe
trabalhadora plataformizada heterogênea, pode-se inferir que a classe plataformizada tenha
mais motivos para aderir aos movimentos feministas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, por meio dos depoimentos de trabalhadores(as) plataformizados(as),
despojados(as) de direitos sociais e trabalhistas, buscou-se demonstrar como a organização
do trabalho gerenciada pelo algoritmo, avaliada pela esfera do consumo, remunerada por
peça, afeta as trabalhadoras mais do que os trabalhadores.
Esse modelo trabalhista demanda disponibilidade integral/ininterrupta para os
chamados de produção, estimulando um trabalhador ideal que, dada a divisão sexual do
trabalho em nossa sociedade, não é gênero neutro. Com a imposição de papéis sociais e, em
decorrência da distribuição desigual do trabalho de cuidado, a produtividade do trabalho
feminino não se equivale a produtividade performada por um homem, pois o tempo que a
mulher consegue se dedicar integralmente e estar disponível às chamadas é inferior. As
mulheres são interrompidas pelos chamados de reprodução da vida. Por outro lado, a
necessidade de produção não se interrompe, porque se pararem de trabalhar, não produzem
a remuneração necessária à reprodução da vida.
O gerenciamento algorítmico se apropria, organiza e reproduz um conjunto de
desigualdades já existentes. Os algoritmos refletem não apenas os valores de seus criadores,
como também reproduzem as desigualdades estruturais do mundo do trabalho. O que
verificamos são respostas algorítmicas aos anseios do capital em detrimento da condição
humana dos(as) trabalhadores(as). A política algorítmica” possui viés de gênero.
83
BESSE, Susan. Modernizando a Desigualdade: Reestruturação da Ideologia de Gênero no Brasil (1914-1940).
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 156.
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VIDIGAL, Viviane. A classe plataformizada tem dois sexos: trabalho, algoritmização e resistência. Revista Jurídica Trabalho e
Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 4, p. 1-37, 2021.
A plataformização do trabalho agudiza os mecanismos de discriminação às mulheres.
Uma tática utilizada por elas é apagar o gênero, para não sofrer preconceito e para não serem
lembradas como mulher, invisibilizando a corporeidade feminina.
Por outro lado, as trabalhadoras negociam sua visibilidade e criam estratégias na
resistência à precarização do trabalho e na luta social por direitos, de forma que as questões
de gênero sejam incluídas de maneira transversal nas pautas de negociações.
Dar voz e luz à trajetória dessas trabalhadoras faz parte da construção de uma
contraposta à histórica invisibilização feminina no mundo do trabalho. Afinal, a classe
plataformizada tem dois sexos.
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